Fascismo de volta como ameaça na Europa. De volta pelo voto de populações com razoável nível de informação política, e também de conhecimento da História do século XX e seus principais grandes eventos. Eventos de progresso com a marca indelével da Revolução Bolchevique, em 1917. Eventos de regressão brutal, como a ascensão de Hitler ao poder em 1932. Eventos como a derrota do Terceiro Reich, cuja marcha inicial não tornava inviável o anúncio de Reich milenar. Pelo contrário.
Como se explica esse retorno de algo que, na segunda metade do século, era rejeitado de forma quase unânime por essas populações que hoje o aprovam? Sim, porque na França, país onde a esquerda combativa não deixa de ter espaço significativo, por exemplo, com o França Insubmissa, liderado por Mélenchon, os antigos bastiões do outrora poderoso Partido Comunista Francês são os que apontam índices maiores de votação para o partido neofascista de Marine Le Pen.
Na Itália, a coisa não é distinta. Onde havia um poderosíssimo Partido Comunista Italiano, hoje temos um governo declaradamente fascista, que não deixa de apoiar Netanyahu nem quando os demais governos burgueses, na França, na Espanha, no Reino Unido e até na Alemanha já começam a tentar se livrar do apoio incondicional que deram ao sionismo, durante boa parte da limpeza étnica posta em prática pelo exército de ocupação da Cisjordânia e de Gaza.
Para explicar tal transformismo trágico, não se pode olhar para o passado recente, apenas. Há um processo que vem de longa data, e no qual a própria esquerda anteriormente combativa, classista, tem, por abandono de teorias e práticas revolucionárias, anticapitalistas, responsabilidade expressiva.
Voltamos a um 8 de maio de 1945, em um mundo que se considerava, até definitivamente, libertado da ameaça de um novo conflito mundial.
Um cenário otimista se abria, com a derrota do nazi-fascismo, e a perspectiva de um desejado tempo de paz.
A resistência clandestina nacional contra os ocupantes e seus biltres internos carregava, em cada país ocupado, o germe da Revolução Socialista, pois trazia para o proscênio da luta política os Partidos Comunistas. A disputa do futuro da Iugoslávia, da Grécia, da França e da Itália se intensificava na medida em que o desfecho da grande tragédia se aproximava. Esses partidos eram os que se mantiveram, não só organizados, como liderando, armados, as resistências internas contra os ocupantes nazistas.
Partisans, na Iugoslávia; Partigiani, na Itália e Maquisards, na França, Movimento de Resistência Grego, tinham, todos, os Partidos Comunistas como segmento hegemônico sobre as demais correntes combatentes — socialistas, democratas antifascistas e os independentes.
Mas Stalin, mesmo antes de os Estados Unidos terem destruído Hiroshima e Nagasaki, com a bomba atômica que os soviéticos só viriam a possuir em 1949, já havia dado sinais de acordo com a tese de Roosevelt. Optava por uma paz duradoura e convivência de regimes em torno da fundação da ONU, dando fim ao Comintern em 1943. Quais as consequências imediatas?
Na Iugoslávia, Churchill recorreu ao auxílio de Stalin, que se empenhou para que Tito se compusesse com o primeiro-ministro retornando de Londres. Mas, nem pensar! Tito tinha clareza do processo que conduzia. Não abriria mão da Revolução. Mais do que um grupo guerrilheiro de resistência, os iugoslavos se organizavam para algo mais consistente, um verdadeiro exército garantidor da nova ordem que se estabeleceria após a expulsão dos alemães, e eliminação das lideranças locais, colaboracionistas dos nazistas. Ousou lutar; venceu. E com o clima de hostilidade para com Stalin, implantou seu socialismo autogestionário, sem perder espaços para acordos com o Ocidente capitalista.
Stalin perdia a posição de força que conquistara com o combate em armas convencionais, e passava a ter prioridades com a manutenção da estabilidade de suas fronteiras. A Polônia valia a entrega da Grécia aos ingleses, que retornava seu protetorado profundamente ameaçado com o avanço dos comunistas pela conquista do poder com a retirada dos alemães.
O quadro muda então para os comunistas italianos e franceses, cujos secretários-gerais, Togliatti e Thorez, mantinham fortes laços de aliança com o PCUS, e se recusaram a seguir a rota definida por Tito, na Iugoslávia, que se recusou a um entendimento organizado por Churchill, com acordo de Stalin.
PCF e PCI levam sua base, mobilizada, a entregar suas armas e compor com os governos burgueses, dos quais foram varridos menos de dois anos depois.
Inicia-se, aí, o processo de conciliação de classes que, nas décadas seguintes, só registrou verdadeiras rendições.
Era a Guerra Fria que dava seus primeiros passos, ao mesmo tempo em que um competente Plano Marshall inundava a Europa com financiamentos que permitiam a recomposição capitalista acelerada e a retomada do controle político pelas burguesias locais, enriquecendo ainda mais os maganos do imperialismo estadunidense.

Tito, na Iugoslávia, dava exemplo da linha justa. Impunha um programa socialista autogestionário, unificando o país e, inclusive, tirando vantagem de sua opção independente em relação a Moscou. Credenciou-se como liderança fundamental no Movimento dos Não-Alinhados que, com o líder indiano Nehru e o egípcio Nasser, desempenhava papel importante no combate internacional anti-imperialista na segunda metade dos anos 1950.
PCI e PCF não perderam a influência social que herdaram da posição combativa na II Guerra Mundial. Porém, o projeto de Welfare State era um contraponto à influência soviética.
A conciliação de classes sob a lógica de um eleitoralismo condicionando a luta aos parâmetros da ordem se implanta, então, de forma acelerada.
O marxismo era retirado sem reações maiores no Partido Social-Democrata alemão (SPD), que chegou a fazer de Helmut Shmidt, ex-piloto da Lufwaffe nazista, o primeiro-ministro, e no PS espanhol, sob liderança de Felipe Gonzalez.
Esses fatos são prova de que, se a direita encontrou espaço para renascer, fazendo com que os principais bastiões eleitorais do PCF e do PCI, para além do SPD, marchassem para a extrema direita, isso se deveu muito ao desalento e à decepção das classes trabalhadoras que não se viram contempladas com reformas estruturais para além das benesses sobrantes do enriquecimento burguês.
E é por aí, certamente, que o neofascismo encontrou a chave do cofre para o “contra tudo isso que está aí” europeu. Onde a única resistência expressiva ainda está com o que resta de esquerda combativa, radical, no França Insubmissa que tem Mélenchon como ponta de lança nas disputas majoritárias.
E como se deu o processo no Brasil?
Evidentemente, com o quadro de desagregação das classes trabalhadoras, com a uberização, a terceirização, a pejotização, para além do cantochão apologético do falacioso “empreendedorismo” na descaracterização da informalidade.
Lula chega ao Planalto um ano depois do último Encontro Nacional do PT ainda na oposição. Encontro Nacional que produziu, como resolução final, um dos mais severos libelos contra o mandarinato FHC, e propondo um governo popular-democrático em sentido radicalmente oposto. E nada de surpreendente havia nisso, a considerar o slogan de campanha do próprio adversário direto, José Serra, nome proeminente do período anterior, mas que não hesitava em se afirmar agente da continuidade, sem continuísmo, com um “Muda meu país, mas não muda de bandeira”. Ou seja, dar forma e metodologia nova a um modelo que enfrentava grave crise, e com forte rejeição social.
Serra não se elegeu, mas o slogan não se perdeu. Quem o concretizou foi o próprio Lula, jogando para escanteio tudo o que houve de luta do PT, partido então classista, com objetivo estratégico no Socialismo, contra o grande capital nas décadas anteriores.
Como primeiro ato político, a contrarreforma da previdência voltada para os servidores, primeiro passo do projeto que veio a ser generalizado no governo do golpista Michel Temer.
Sobre reformas estruturais prometidas historicamente pelo Partido do qual Lula era Presidente de Honra, nem pensar. Nada de Reforma Agrária; nada de Reforma Tributária progressista corretora da escandalosa desigualdade de tratamento entre capital (patrimônio e renda praticamente intocados) e trabalho (assalariados descontados na fonte). Muito menos uma reforma financeira, estabelecendo controle sobre bancos privados e sua degradante atividade especulativa. Privatizações? Sem interrupção. Até ampliadas. Mais grave, no âmbito de uma brutal reprimarização de nossa economia, e da ausência da já citada Reforma Agrária. Um tsunami de privilégios ao agronegócio predador ambiental e de empregos no campo.
Esse cenário não podia deixar de ter profundas consequências políticas e sociais. Políticas, pela quase total desmobilização do PT e dos movimentos sociais, especificamente do MST e da CUT. O que tornou inevitável a fundação do PSOL, para que se mantivesse viva a bandeira que já havia sido do próprio PT no sentido de condicionar as movimentações táticas ao objetivo estratégico do Socialismo.
É nesse contexto que a direita golpista, a direita que havia se beneficiado de vantagens infindas durante os governos lulistas, sentiu que o processo tinha que sofrer alteração. Na impossibilidade de Dilma Rousseff garantir o silêncio de sua base ao ver importantes direitos sendo sequestrados por conta do verdadeiro estelionato eleitoral, ao entregar a nossa macroeconomia a um funcionário de segunda linha do Bradesco e mazelas construídas pela Lava Jato sendo potencializadas numa campanha pesada da grande mídia empresarial, promovem o impeachment da presidente.
Conclusão: sem dúvida, o fato de a Revolução Digital ter se concretizado sob a égide do capital privado, e se potencializado na esteira de uma nefasta globalização financeira com a desindustrialização consequente na Europa e no Brasil, a responsabilidade do retorno do fascismo, pelas vias institucionais, sem necessitar de regimes ditatoriais repressivos, está também em nosso campo. Na conciliação de classes, no Brasil na sequência do que se passava nos principais países capitalistas; na falácia de manter a luta política dentro do âmbito da ordem estabelecida. Como que tornando claro não pretender nunca revolucioná-la.
Com tal opção, a esquerda terminou por entregar o propósito rupturista do “contra tudo isso que está aí” a uma extrema direita que o cumpre. Mas, é claro, dentro dos limites do combate a uma ordem cultural e comportamental, progressista mas ousada para os parâmetros do senso comum das classes médias e populares. Não por acaso, está aí a religiosidade fundamentalista em plena ascensão para confirmar.
Ou a esquerda retoma a leitura radical da alternativa anticapitalista, e encontra formas de comunicação para levar essa teoria aos explorados, ou teremos um tempo de ameaça concreta do retorno da barbárie.
Warren Buffet, ícone recentemente aposentado do manipulado “mercado” globalizado é quem nos avisa, a partir de declaração ao vivo e a cores em TV estadunidense: “A luta de classes existe. E nós a estamos vencendo”.
Inverter esse quadro é a nossa obrigação. Luta que segue!!
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Jornalista, ex-deputado, fundador e membro da Direção Nacional do PSOL.