“Quero ver um novo mundo criado. Ele deve crescer a partir do antigo de acordo com sua força e habilidade, livre da escória e dos grilhões do capitalismo. Este novo mundo requer novas instituições — escolas, parques, oficinas […] Quando aprendemos a traduzir nosso poder em vida, vivendo e vivendo melhor, estaremos a caminho do novo mundo”
Emil Seidel, primeiro “Socialista do Esgoto” a ser prefeito de uma capital nos EUA
O Brasil é um país rasgado pela desigualdade de renda. Mas, uma de suas formas mais brutais de desigualdade é pouco “monetária”: a falta de acesso ao saneamento básico de qualidade num país onde essa cobertura atinge apenas cerca de 62% da população. Aqui vemos a incapacidade do modelo de gestão petista – governante majoritário dos últimos 22 anos – em expandir esse direito aos brasileiros. Em 2000 essa cobertura era de 44% e de 52% em 201011.
Ao mesmo tempo, esses números escondem ainda piores desigualdades: enquanto a região Sudeste recuou para cerca de 80% na sua cobertura, o Nordeste ficou em 31% e o Norte 14% em números de 2022. É preciso dizer: Igualdade é esgoto para o povo pois o contrário resulta em uma política de destruição ambiental combinada com adoecimento coletivo das pessoas sem saneamento, condenando-as a uma péssima qualidade de vida.
Nesse contexto, milhares de pessoas foram impactadas pela crise de novovírus na Baixada Santista no início de 2025. Essa virose, ligada a problemas de saneamento, tem coisas a revelar. Mas não são indícios positivos, já que a conjuntura socioeconômica e ambiental brasileira parece mais propensa a fazer a classe média experimentar problemas de saúde pública mais sérios do que conseguir que os trabalhadores empobrecidos os superem.
Diante da Emergência Climática e de um cenário onde as mudanças de temperaturas e o desequilíbrio ecológico serão bombas relógio de patógenos e suas doenças – frutos da forma de organizar a sociedade dentro da civilização capitalista industrial – teremos de radicalizar com “reformas não reformistas” rumo a uma sociedade justa. Para isso, será necessário buscar inspiração em uma tradição esquecida do Socialismo: a dos Socialistas do Esgoto.
Surto de Virose revela o pacto neoliberal sobre o saneamento
Ligada ao enfraquecimento da recém privatizada Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP, a virose impactou 11 mil pessoas nos registros e certamente muito mais no total. A forte gastroenterite espantou turistas das cidades e fez com que 19% das reservas em hospedagens fossem canceladas. Até o governador Tarcisio de Freitas foi cobrado pela própria pequena burguesia que costuma aprová-lo: a Federação de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares demandou respostas ao “desproporcional” impacto da virose. A situação também se replicou para outras cidades litorâneas do país como no estado do Paraná e Santa Catarina, mostrando que os impactos econômicos e sociais do desmonte da saúde pública são tremendos.
Igualdade é esgoto para o povo pois o contrário resulta em uma política de destruição ambiental combinada com adoecimento coletivo das pessoas sem saneamento
Enquanto isso, as privatizações têm se tornado um consenso dentro da mentalidade política institucional. O governo, por meio de Lula e Haddad, com recurso do BNDES oferta condições financeiras para acelerar desestatizações. Tudo para que governadores como Tarcisio ou o petista Rafael Fonteles do Piauí privatizem seus sistemas estaduais, mostrando que o abandono do saneamento público é um pacto entre neoliberalismo puro sangue e progressista.
Além disso, veremos o agravamento do ataque de patógenos contra comunidades com a aceleração da Emergência Climática. Viroses se proliferam melhor com o aumento da temperatura dos oceanos e a invasão de água doce com chuvas extremas mais frequentes, tanto quanto os mosquitos proliferadores de doenças são estimulados pela engrenagem aquecedora do capitalismo. A Dengue já causa a morte de 12 mil pessoas por ano no mundo, principalmente crianças. Com 4º graus de aquecimento – provável situação se nada acontecer até 2100 – teremos um adicional de 2.8 milhões de casos anuais, além de uma explosão de viroses impossíveis de serem contidas pelos enfraquecidos sistemas de saúde do Sul global.
Aqui assumimos duas teses: 1) a esquerda terá de retomar a bandeira de serviços universais básicos como o saneamento para a erradicação da desigualdade. Medidas como essa serão essenciais para a mitigação do sofrimento da classe trabalhadora no contexto da Emergência Climática. Porém tais políticas públicas devem servir como “reformas não reformistas” para atingir o Socialismo, como defendia o marxista e ecologista André Gorz22. 2) A luta socialista deve ressignificar a tradição dos Socialistas do Esgoto estadunidenses no início do século XX. Esses militantes governaram cidades sem ver contradição entre uma revolução e reformas para melhora da qualidade de vida de nossa gente. Retomar a batalha do saneamento como igualdade radical no contexto do colapso ecológico vigente será uma necessidade de sobrevivência, além de uma grande plataforma política.
Socialismo do Esgoto: uma tradição a se reinventar
No final do século XIX Milwaukee era uma cidade estadunidense assolada pelas contradições da Revolução Industrial. Mortalidade infantil, água poluída e esgotos a céu aberto faziam parte da paisagem. Nesse cenário nasceu o “Socialismo do Esgoto”, socialistas descendentes de alemães que fugiram da perseguição após a revolução de 1848 e que prometiam “limpar o legado sujo da Revolução Industrial”33. O Partido Socialista estadunidense abraçou o termo pejorativo como uma de suas ideias centrais e foi capaz de dominar a política da capital de Wisconsin por décadas, além de construir um dos mais sofisticados sistemas de saneamento dos EUA até hoje.
Hoan aplicou um programa radical que ajudou a consolidar a reputação dos socialistas como eficientes criadores de políticas públicas: educação de qualidade, parques públicos para a classe trabalhadora, água limpa, esgoto tratado e até saunas públicas!
O primeiro prefeito socialista da cidade foi Emil Seidel em 1910 com uma quantidade esmagadora de votos: 46% contra 39% dos Democratas e 19% dos Republicanos. Nas palavras de Seidel:
Alguns espertinhos do leste chamavam o nosso [Socialismo] de Socialismo do Esgoto. Sim, queríamos esgotos nas casas dos trabalhadores; mas queríamos muito, muito mais do que esgotos. Queríamos que os nossos trabalhadores tivessem ar puro; queríamos que eles tivessem sol; queríamos casas planejadas; queríamos salários dignos; queríamos recreação para jovens e idosos; queríamos educação profissional; queríamos uma chance para cada ser humano ser forte e viver uma vida de felicidade44.
Daniel Hoan o sucedeu de 1916 a 1940, a maior administração contínua de um socialista nos EUA. Ardente em suas ideias, Hoan aplicou um programa radical que ajudou a consolidar a reputação dos socialistas como eficientes criadores de políticas públicas: educação de qualidade, parques públicos para a classe trabalhadora, água limpa, esgoto tratado e até saunas públicas! Hoan fez a luta pelo mais eficiente sistema de esgoto até então, uma luta contra a sandice da noção de que esgotos invadem a propriedade privada, além de ter criado o primeiro sistema público de ônibus e a primeira política pública de habitação do país55.
Em 1932, o prefeito afirmou que os socialistas provaram “que os trabalhadores podem governar uma cidade melhor que Republicanos, Democratas e capitalistas” e que “se puderam gerir uma cidade, poderiam gerir um estado e uma nação”66. Mesmo com a guerra fria os socialistas ainda governariam Milwaukee de 1948 até 1960 com Frank Zeidler.
Os defensores de esgoto chegaram ao Congresso com Victor C. Berger pela primeira vez em 1911 e tiveram grandes corridas presidenciais: Eugene V. Debs teve 6% dos votos em 1912 e Norman Thomas teve a maior votação absoluta dos socialistas (884 mil votos) em 1932. Acredita-se que Franklin D. Roosevelt tenha inspirado boa parte de seu programa de governo no New Deal apresentado pelos socialistas, e que tenha lido o livro “City Goverment” de Daniel Hoan na sua guinada à esquerda com o partido Democrata durante a recuperação do país no pós-Grande Depressão. Os Democratas teriam escanteado os Socialistas da política institucional exatamente por seguirem parte de sua agenda77.
É bem verdade que os “Socialistas do Esgoto” protagonizaram grandes debates até mesmo com Lenin sobre a tese do Socialismo municipalista e defendiam uma tática pacifista como transição ao Socialismo. Apesar dessa polêmica, seu legado é enorme em meio a Emergência climática e a necessidade de defender “esgotos” como igualdade. Afinal, essa corrente está viva em muitos e muitos jardins pelos EUA, uma vez que o fertilizante Milorgamite é produto do seu avançado sistema de saneamento desde 1926. Não é loucura dizer que apesar dessa tradição ter sumido institucionalmente já são as primeiras flores para uma transição ecossocialista.
-
Mulher negra, mãe e avó solo, dirigente do PSOL, advogada popular e a vereadora mais votada da cidade de Santos.
-
Coordernador da Rede Livres, Militante Ecossocialista do Fortalecer o PSOL e doutorando em Economia Política Mundial (UFABC).
- https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39237-censo-2022-rede-de-esgoto-alcanca-62-5-da-populacao-mas-desigualdades-regionais-e-por-cor-e-raca-persistem ↩︎
- https://democracyuprising.com/2021/07/22/as-reformas-nao-reformistas-de-andre-gorz-mostram-como-podemos-transformar-o-mundo-hoje/ ↩︎
- https://www.wisconsinhistory.org/turningpoints/tp-043 ↩︎
- John Nichols. The ‘S’ Word: A short history of an american tradition… Socialism. 2015 ↩︎
- https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-03-13/who-were-milwaukee-s-sewer-socialist-mayors ↩︎
- John Nichols. The ‘S” Word: A short history of an american tradition…Socialism.2015. ↩︎
- https://newpol.org/is-the-new-deal-socialism-by-norman-thomas/ ↩︎