O Brasil vive uma guerra civil não declarada. Com mais de 40 mil homicídios por ano, o país figura entre os mais violentos do mundo em números absolutos. Em 2022, foram registrados 47.508 assassinatos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Embora tenha havido uma leve queda na última década, a taxa ainda é de 22,7 mortes por 100 mil habitantes, o que nos coloca entre os países mais letais fora de zonas oficialmente em guerra.
Por trás desses números, há um recorte racial e territorial gritante: mais de 75% das vítimas de homicídio são negras e a maioria vive nas periferias urbanas. Os jovens negros entre 15 e 29 anos são os alvos preferenciais desse genocídio contínuo. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Essa não é uma epidemia espontânea – é uma política de morte sustentada por um Estado que não reconhece o direito à vida de sua população mais vulnerável.
O braço armado desse sistema é uma das polícias mais letais do planeta. Em 2022, 6.429 pessoas foram mortas por policiais no Brasil. Só no estado da Bahia, foram 1.464 mortes – o maior número do país. Rio de Janeiro (1.330) e São Paulo (419) completam o pódio da letalidade. Isso significa que, em média, 17 pessoas são mortas por dia por agentes do Estado, muitas delas em operações violentas em comunidades das periferias.
1. Desmilitarizar para humanizar
A militarização das polícias estaduais é um dos maiores entraves à construção de uma política pública de segurança eficaz. A Polícia Militar brasileira é uma das poucas forças policiais do mundo que ainda opera sob lógica militar, com rígida hierarquia, cultura de guerra e treinamentos voltados para o confronto.
Em comparação com outros países, a situação é alarmante. Segundo a ONU, as polícias brasileiras matam mais que todas as polícias dos Estados Unidos somadas, mesmo com uma população bem menor. Nos EUA, a taxa de letalidade policial gira em torno de 1,2 morte por 100 mil habitantes; no Brasil, ela chega a 3 vezes mais, com picos superiores a 7 por 100 mil em estados como a Bahia e o Rio de Janeiro.
Assim, a desmilitarização é o ponto de partida para reconfigurar a atuação policial com base nos princípios democráticos: proximidade com a comunidade, formação em direitos humanos, controle social e transparência. Uma polícia civil e cidadã é incompatível com o atual modelo militarizado.
2. Segurança se faz com foco na garantia de direitos e participação popular
A lógica da ocupação violenta e episódica não resolve o problema da violência – apenas o desloca ou o aprofunda. Dados do Instituto Igarapé mostram que a violência armada se concentra em pequenos territórios urbanos, conhecidos como “zonas quentes”. Em 2022, 50% dos homicídios do Brasil ocorreram em apenas 2% dos municípios.
Isso demonstra que é possível uma atuação territorializada, focada na prevenção e na construção de redes locais de proteção. Experiências como os Territórios de Paz em Pernambuco ou o Pacto pela Vida (em sua fase inicial) mostraram que políticas integradas de segurança, assistência social, educação e cultura conseguem reduzir significativamente os índices de violência.
Investir em equipamentos públicos, políticas culturais e presença qualificada do Estado no território é mais eficaz – e menos custoso – do que qualquer operação policial. Segurança pública se faz com creche, escola, arte e dignidade.
3. Justiça social como antídoto à violência
A política de encarceramento em massa é outro motor da violência estrutural no Brasil. Atualmente, temos a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 830 mil presos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Cerca de 41% dos detentos ainda não foram julgados, vivendo em condições degradantes em prisões superlotadas.
O encarceramento é seletivo: 67% da população carcerária é de pessoas negras e mais de 60% têm, no máximo, o ensino fundamental. A maioria responde por crimes não violentos, como pequenos furtos e tráfico de drogas.
É um sistema que prende para excluir, não para ressocializar.
Enquanto isso, a taxa de resolução de homicídios no Brasil é baixíssima. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), apenas 21% dos assassinatos são solucionados, o que evidencia que o Estado prefere prender por quantidade do que por justiça.
Um projeto de esquerda deve propor revisão da política de drogas, redução da população carcerária com alternativas penais e investimentos em justiça restaurativa. Em vez de prender mais, é preciso humanizar o sistema carcerário, de maneira a evitar que vidas sejam tragadas pela engrenagem penal ainda na juventude.
Tratar a segurança pública pela ótica da esquerda é romper com a lógica da barbárie e construir um pacto civilizatório em que a vida seja o bem mais protegido. Isso exige coragem política, enfrentamento aos interesses do aparato repressivo e compromisso com os mais vulneráveis. Não se trata de “passar a mão na cabeça de bandido”, como vociferam os defensores do autoritarismo, mas de construir um Estado que proteja em vez de matar.
O futuro do Brasil passa por garantir que um jovem negro da favela tenha mais chances de viver do que de morrer. E isso só será possível quando a segurança pública for tratada como direito, e não como privilégio.
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Professor de Sociologia; fundador do Movimento Policiais Antifascistas e Coordenador Geral da Federação dos Trabalhadores do Estado da Bahia (FETRAB); Segundo colocado para Prefeito de Salvador em 2024.