Generic selectors
Somente resultados exatos
Pesquisar no título
Pesquisar no conteúdo
Post Type Selectors
"><font style="vertical-align: inherit

Gênero, sexualidade, raça e propriedade privada: como o patriarcado e o racismo se tornam estruturais e estruturantes da sociedade capitalista

É comum — tanto no senso comum quanto em parte dos discursos progressistas — acreditar que opressões como o machismo, a LGBTfobia, o racismo e a transfobia surgem, primordialmente, no campo das ideias, como se fossem produtos do preconceito, da ignorância ou da cultura, desvinculados das condições materiais. Essa leitura, embora tenha força no nível da aparência, não resiste a uma análise materialista rigorosa.

Opressões sistematizadas não brotam de um erro moral ou de uma construção cultural isolada. Eles nascem, fundamentalmente, das transformações materiais que moldaram a sociedade, em especial da consolidação da propriedade privada, da divisão internacional do trabalho e da expansão do sistema capitalista.

O patriarcado, portanto, não surge simplesmente porque, em algum momento, homens decidiram ser “maus” ou desenvolveram ideias misóginas espontaneamente. Ele nasce porque, materialmente, foi necessário organizar a sociedade de modo a garantir a transmissão da propriedade privada.

Opressões de gênero, sexualidade e raça emergem diretamente dos processos históricos de formação das sociedades de classe. Isso ocorre quando a humanidade dá um salto produtivo — com a agricultura, a domesticação de animais, a acumulação de excedentes e, posteriormente, com a expansão colonial, a escravidão moderna e a pilhagem dos povos racializados no Sul Global. Nesse processo, aparece pela primeira vez a necessidade de transmitir riqueza de geração em geração, controlar corpos, territórios e força de trabalho.

Para garantir que os bens acumulados permanecessem na mesma linhagem e que as riquezas extraídas da exploração colonial e da escravidão fossem concentradas nas mãos das elites europeias, foi necessário criar mecanismos de controle sobre a reprodução biológica, sobre os corpos das mulheres, sobre os povos submetidos à escravização e, também, sobre os corpos que fogem à norma cisgênera. Assim como o patriarcado, o sistema político onde homens, especialmente os mais velhos, detêm o poder e a autoridade sobre as mulheres, as crianças e os recursos da sociedade, perpetuando relações de dominação, controle e desigualdade de gênero, emerge para garantir a sucessão da propriedade privada, e o racismo se constitui como tecnologia de gestão da força de trabalho e dos territórios, a cisnormatividade — isto é, a imposição da ideia de que só existem e são legítimas as pessoas que se alinham ao gênero designado no nascimento — surge como parte do aparato que organiza os corpos e regula a reprodução social dentro dos moldes necessários à lógica da propriedade privada.

Foto: SibRapid / Shutterstock

O patriarcado, portanto, não surge simplesmente porque, em algum momento, homens decidiram ser “maus” ou desenvolveram ideias misóginas espontaneamente. Ele nasce porque, materialmente, foi necessário organizar a sociedade de modo a garantir a transmissão da propriedade privada. Isso exigiu transformar as mulheres em instrumentos reprodutivos, restringir sua autonomia e naturalizar uma divisão sexual do trabalho na qual o homem ocupa a esfera pública e a mulher, a esfera privada. Como mostra Angela Davis, a opressão das mulheres negras, em particular, combinou racismo e patriarcado de maneira brutal, desde a escravidão, quando mulheres negras eram tratadas simultaneamente como força de trabalho e como corpos reprodutivos à disposição da reprodução racializada da força de trabalho escravizada.

É preciso entender que as opressões de gênero, sexualidade e raça nascem da realidade material e concreta.

Da mesma forma, o racismo não emerge de um ódio irracional ou de preconceitos isolados, mas como uma necessidade do modo de produção capitalista em expansão. Ao racializar corpos, especialmente de povos africanos e indígenas, o capitalismo cria uma hierarquia de exploração, desumanizando populações inteiras para justificar regimes de trabalho forçado, escravidão, genocídio, pilhagem e expropriação de terras. O racismo se torna, assim, uma tecnologia de gestão da força de trabalho e da reprodução social, estruturando profundamente as desigualdades econômicas e sociais. Como nos ensina Lélia Gonzalez, no Brasil essa dinâmica se complexifica ao se articular com os processos específicos de colonialidade, mestiçagem e apagamento da presença negra, produzindo um racismo que opera tanto pela violência aberta quanto pela negação simbólica da existência e da humanidade dos povos negros.

Na mesma lógica, a imposição da heterossexualidade e da cisgeneridade compulsórias, ou seja, a imposição de sistemas normativos que impõem, como padrão social obrigatório, a expectativa de que todas as pessoas sejam heterossexuais e se identifiquem com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer, resulta no que hoje chamamos de LGBTfobia — não pode ser superada por uma mudança de mentalidade apenas. Ela cumpre um papel econômico muito concreto: assegurar que a reprodução biológica e social aconteça dentro dos marcos da família patriarcal, cisgênera e heterossexual, garantindo herdeiros legítimos, a continuidade da propriedade e a manutenção de uma ordem social estável e funcional aos interesses da classe dominante. Judith Butler contribui de forma decisiva ao demonstrar como as normas de gênero e sexualidade são não apenas performances sociais, mas dispositivos que reiteram permanentemente a ficção da naturalidade da cisgeneridade e da heterossexualidade, operando como mecanismos de coerção material sobre os corpos e sobre o desejo.

Corpos, afetos, expressões de gênero e desejos que não se enquadram nesse molde — representam, do ponto de vista dessa lógica material, uma ameaça à organização da reprodução econômica e social baseada na herança, na sucessão privada e no controle dos corpos. Por isso, como nos alerta Rosa Luxemburgo, o capitalismo não sobrevive apenas pela exploração econômica direta, mas também pelo uso sistemático de opressões e violências sociais que reforçam a sua capacidade de dividir, hierarquizar e fragmentar a classe trabalhadora.

Portanto, tanto o racismo e o patriarcado e suas derivações não são produtos primários das ideias, mas superestruturas que surgem a partir de uma infraestrutura material concreta: a divisão de classes, a propriedade privada, a expansão colonial, a exploração econômica e a necessidade de controlar corpos, territórios, desejos, expressões de gênero e reprodução. As ideias misóginas, racistas e LGBTfóbicas vêm depois, como justificativas, naturalizações e reforços ideológicos de um sistema materialmente existente. Como bem sistematiza Lenin em O Que Fazer?, a ideologia dominante nunca surge espontaneamente das massas. Ela é produzida e difundida sistematicamente pela classe dominante, que faz da cultura, da religião, do direito e da ciência instrumentos permanentes de controle ideológico, impedindo que a classe trabalhadora perceba sua própria condição e se organize para sua emancipação.

O patriarcado e o racismo e todo o seu aparato de opressão são reforçados e instituídos como norma social pelo aparato ideológico da classe dominante.

Essa compreensão é fundamental porque revela que o combate a essas opressões não se esgota no enfrentamento simbólico, moral ou cultural — embora ele seja necessário. Sua raiz está na ordem econômica que as gera e as sustenta. Não haverá verdadeira libertação de gênero, sexualidade e raça sem enfrentar o sistema que, desde sua origem, precisa do controle dos corpos, da subjugação dos povos racializados, da imposição da cisgeneridade e da heterossexualidade compulsórias, para garantir a reprodução da propriedade privada, das desigualdades raciais, de gênero e de classe.

Se a ideologia dominante de um tempo é sempre a ideologia da classe dominante, como disse Marx, temos que afirmar: o patriarcado e o racismo e todo o seu aparato de opressão são reforçados e instituídos como norma social pelo aparato ideológico da classe dominante. Isso inclui a cultura, a religião, o direito, a educação, os meios de comunicação e as ciências normativas — como a medicina e a psicologia hegemônicas —, que operam como instrumentos de naturalização e perpetuação dessas estruturas.

Foto: Shutterstock

Dito isso, afirmamos cinco questões fundamentais que devem estar nítidas para todo dirigente político e militante que tenha como objetivo a superação das opressões e do sistema capitalista:

  1. É preciso entender que as opressões de gênero, sexualidade e raça nascem da realidade material e concreta — do modo de produção, da divisão internacional do trabalho, da propriedade privada, da expansão colonial e da necessidade de controle social dos corpos. Elas são, posteriormente, reforçadas socialmente pelo aparato ideológico da classe dominante.
  2. A classe trabalhadora não produz o discurso que reforça e faz a manutenção do machismo, da LGBTfobia e do racismo. Ela apenas reproduz essas ideologias, da mesma forma que reproduz diversas outras ideias da classe dominante, fruto da alienação e da reprodução da sociabilidade capitalista.
  3. Entre nós, a classe trabalhadora, o combate às opressões deve se dar da mesma forma e com ferramentas muito similares às que usamos para transformar a classe trabalhadora de classe em si para classe para si — ou seja, pedagogicamente demonstrar que essas ideias que reproduz não estão a serviço dela mesma enquanto classe, mas a serviço da manutenção da exploração, da opressão e da dominação.
  4. Isso não pode significar complacência com as opressões em nossos espaços, especialmente nos espaços de dirigentes políticos que tiveram acesso às condições necessárias para refletir, estudar e, na medida do possível, superar o aparato ideológico que reforça as opressões. É preciso ser rígido nos propósitos e amplo nos métodos, garantindo que nossos espaços não reproduzam as violências do racismo e do patriarcado, pois não há projeto emancipatório possível que caminhe tolerando as opressões.
  5. Só é possível superar as opressões junto com a nossa classe. Para isso, é preciso superar a ideia de que o combate ao racismo e as estruturas do patriciado não seja uma questão fundamental da luta de classes. Como apontam Rosa Luxemburgo, Angela Davis, Lélia Gonzalez e Judith Butler, a luta anticapitalista só é verdadeiramente revolucionária se for, simultaneamente, antirracista e antipatriarcal, pois essas opressões não são acessórios do capitalismo, mas pilares do seu funcionamento histórico. O contrário também é verdadeiro: o combate às opressões desassociado da luta de classes é uma farsa que precisa ser duramente combatida.

Foto principal: Freepik

  • Professor e membro da Executiva Nacional do PSOL.

  • Mulher negra, mãe e avó solo, dirigente do PSOL, advogada popular e a vereadora mais votada da cidade de Santos.