Neste momento de choque entre Estados Unidos e China, é preciso ter clareza de que o inimigo hegemônico imediato está na Casa Branca e que, em certa medida, o Brasil deve sim explorar as oportunidades que os BRICS possibilitam, flertando com seus interesses imediatos em meio a um sistema em crise.
Todavia, é igualmente necessário compreender o que significa imperialismo hoje — e o agronegócio é uma grande metáfora desse conceito. A partir das formulações de Lenin e Rosa Luxemburgo sobre o imperialismo, é difícil sustentar a existência de um bloco verdadeiramente “anti-imperialista” no cenário político interestatal. O consenso em torno do agronegócio simboliza de forma eloquente essa realidade.
O que é o “imperialismo” hoje
Seria impossível encerrar uma discussão sobre imperialismo em tão pouco espaço, mas vale recuperar aspectos da teoria do imperialismo frequentemente esquecidos pela esquerda antissistêmica. Lênin elaborou uma análise profunda e ainda essencial ao compreender o imperialismo não como uma política externa contingente, mas como uma fase específica do capitalismo. Essa etapa se caracteriza pela centralidade dos monopólios, pela fusão do capital bancário com o industrial em capital financeiro, pela exportação de capitais em escala internacional e pela partilha do mundo entre grandes potências. Em outras palavras, o imperialismo não é um “desvio” do capitalismo, mas a sua forma madura.
Assim, tanto o protecionismo quanto o livre-mercado carregam, segundo suas próprias palavras, “diferenças não essenciais” no que diz respeito à formação dos monopólios, já que a monopolização e os superlucros constituem uma “lei fundamental da presente fase do capitalismo”. Quando a hegemonia de um país está consolidada e sua competitividade é inquestionável, ele tende a liberalizar a economia mundial, já que confia em vencer em qualquer arena aberta de concorrência. Mas, quando se sente ameaçado ou busca ascender na hierarquia global desafiando outro pólo dominante, recorre a políticas de proteção e intervenção para se fortalecer.
As diferenças entre uma orientação liberal ou intervencionista são, portanto, irrelevantes para Lênin diante da lógica que sustenta a monopolização e a obtenção de superlucros — a lei fundamental do capitalismo imperialista. Dessa forma, o imperialismo não pode ser reduzido a uma política externa de um governo ou outro, nem à vontade de país A ou B. Ele constitui um sistema global, que produz monopólios, dependência econômica, agressões militares e guerras, estruturando de forma permanente as relações internacionais sob o capitalismo.
A teorização de Lênin nos conduz a uma interpretação inequívoca diante da crise sem precedentes que atravessamos: é preciso combater as políticas de acumulação monopolista (ou oligopolista) de capital. Isso implica defender espaços que podem ser entendidos como “monopólios” não mercantis, como o SUS, que em seu potencial desmercantiliza a saúde e garante direitos universais. Ao mesmo tempo, exige enfrentar monopólios mercantis, como as gigantes do comércio de agroquímicos e agrotóxicos — da estadunidense Monsanto à estatal ChemChina —, ambas produtoras do tóxico glifosato. Aliás, o Brasil é o maior destino do glifosato produzido na China, agrotóxico associado a infertilidade, sérios danos hepáticos e renais, além de profundos impactos ambientais.
Aqui, a contribuição de Rosa Luxemburgo reforça e amplia a de Lênin: enquanto ele destacou a centralidade da concentração e dos monopólios como fase do capitalismo, Rosa demonstrou que o imperialismo é uma necessidade estrutural permanente. O capital não se limita a seus próprios limites “puros”: ele só se reproduz expandindo-se continuamente sobre territórios, formas sociais e modos de vida ainda não subordinados ao mercado. O imperialismo se conecta com a acumulação primitiva teorizada por Marx: essa expansão incessante que dissolve economias camponesas, esmaga saberes indígenas, corrói serviços públicos e converte bens comuns em mercadorias.
Nossa tarefa, portanto, não é apenas limitar tais monopólios, mas substituí-los por formas de organização capazes de garantir prosperidade fora da lógica da acumulação infinita. Isso significa fortalecer serviços públicos universais, valorizar organizações socioeconômicas não capitalistas e defender os bens comuns contra a sanha destrutiva do capital.
Lênin elaborou uma análise profunda e ainda essencial ao compreender o imperialismo não como uma política externa contingente, mas como uma fase específica do capitalismo.
Agronegócio força Imperialista motor da mudança climática
O capitalismo é motor da Emergência climática e os seus impactos ameaçam o destino da vida complexa na terra. A fase imperialista do capitalismo agravou essa crise especialmente após a grande aceleração do pós-guerra. Nesse momento, se estabelecia a dita “revolução verde”, com seus pacotes de agrotóxicos ambientalmente devastadores e relação de dependência imposta aos agricultores do mundo.
Essa forma de produção capitalista simboliza de maneira exemplar o conceito de imperialismo formulado por Lênin e Rosa Luxemburgo: para ampliar os lucros do capital imperialista, que foi gradativamente apropriando-se de toda a terra, tornou-se necessário criar monopólios agroquímicos que acumularam ganhos massivos mediante a intensificação da exploração e do endividamento dos camponeses, bem como pela destruição das florestas — morada de povos originários em todo o planeta — transformadas em terras produtoras de commodities.
É impossível explicar a profundidade da crise da vida no planeta sem abordar o conluio entre agronegócio e combustíveis fósseis. A simbiose entre ambos é absoluta: nunca foi tão “caro”, em termos energéticos, produzir uma caloria de alimento. Alimento se tornou, literalmente, petróleo. Os combustíveis fósseis estão presentes em toda a cadeia — desde a exportação de fertilizantes até os automóveis que nos levam aos supermercados, passando pelos caminhões que os abastecem.
Para dimensionar a contribuição do sistema alimentar imperialista do agronegócio para a mudança climática, basta observar as emissões de gases desde 1850. Dois países que jamais se industrializaram na intensidade dos países centrais estão entre os cinco maiores emissores do planeta: depois de Estados Unidos, China e Rússia, aparecem Brasil e Indonésia. Mais de 70% dessas emissões, em ambos os casos, têm origem na mudança do uso do solo. Tanto Brasil quanto Indonésia foram — e continuam sendo — subordinados ao imperialismo do “agro”, que os prende a uma lógica de devastação.
É interessante notar as similaridades entre o conceito moderno de imperialismo e os “imperialismos” que marcaram a história: provavelmente todo império do passado se sustentou, em alguma medida, na exploração mobilizada a partir da dominação dos alimentos dos povos oprimidos. O Império Asteca apoiava-se em impostos extraídos em grande parte do milho; os soldados e a burocracia do Império Chinês dependiam fortemente da coleta de tributos em arroz; e a opressão romana não teria perdurado sem o trigo.
Hoje, o imperialismo não pode ser compreendido sem um novo grão que impulsiona o crescimento mortífero do agronegócio: a soja. É impossível entender sua centralidade sem considerar o triângulo EUA–Brasil–China. Enquanto Estados Unidos e Brasil respondem por cerca de 80% da exportação mundial, a China é responsável por aproximadamente 60% de todas as importações globais da soja. Essa mesma soja foi responsável por cerca de 10% do desmatamento da América do Sul entre 2000 e 2010 e figura entre as principais fontes de emissões de óxido nitroso (N2O), um dos gases de efeito estufa mais potentes.

EUA, BRICS e o consenso das commodities em uma COP 30 já capitulada
É quase desnecessário apontar os EUA como motor do imperialismo, com seus tentáculos no agronegócio. Simbolicamente, basta lembrar do seu Corn Belt, a maior região produtora de milho do mundo, que gerou — através do Rio Mississipi e suas águas contaminadas de fertilizantes tóxicos — uma “zona morta” de cerca de 5.500 km2 no Golfo do México, totalmente sem vida.
Contudo, a esquerda antissistêmica tem carecido de rigor teórico ao não conseguir compreender a ascensão chinesa como um processo profundamente ligado à lógica imperialista do agronegócio. Como não entender, como relação de dependência, o aumento de 76 vezes no volume de exportação de soja brasileira para a China entre 1998 e 2024? Como enxergar como algo positivo para a humanidade a ascensão da China apoiada em estatais do veneno, como a ChemChina? Em 2009, a China se tornou a maior parceira comercial do Brasil. Desde então, não apenas a reprimarização da economia brasileira, mas também de outros países latino-americanos, se acentuou1. Esse fenômeno tem sido chamado de Consenso das Commodities ou Consenso de Pequim e está inerentemente ligado à devastação da Amazônia e ao colapso do Cerrado brasileiro2.
Sob uma perspectiva realmente antissistêmica, torna-se impossível compreender os BRICS como uma frente anti-imperialista: a maior parte de seus financiamentos destina-se a projetos de infraestrutura extrativista, e o bloco protagonizou derrotas significativas para a humanidade, como o fim da cláusula do Protocolo de Kyoto referente às reduções obrigatórias de emissões, na época lado a lado com o governo Obama. Em 2014, a China pressionou o governo equatoriano a derrubar a inovadora moratória do petróleo na Amazônia, a iniciativa Yasuní-ITT, o que desencadeou internamente uma guerra do então presidente Rafael Correa, colocando empresas petroleiras contra a sociedade civil e os povos indígenas, taxando-os de opositores do desenvolvimento nacional.
Os antecedentes da COP 30 no Brasil mostram que os BRICS têm sido até agora apenas “mais do mesmo” como alternativa civilizatória3. Em junho, China, Arábia Saudita e Índia travaram, na Conferência de Bonn — pré-COP —, as negociações sobre o balanço global das metas climáticas. Estados Unidos, Irã, Rússia e Arábia Saudita também bloquearam qualquer avanço em um acordo internacional para reduzir a produção de plásticos — outro braço do imperialismo petrolífero, que já contamina até o leite materno. Para completar a capitulação do bloco, o maior país amazônico, por meio de um governo eleito contra o bolsonarismo ecocida, pressiona pela extração de petróleo na Margem Equatorial Amazônica — um ato de traição não apenas à sociedade brasileira, mas à própria humanidade.
Sob uma perspectiva realmente antissistêmica, torna-se impossível compreender os BRICS como uma frente anti-imperialista: a maior parte de seus financiamentos destina-se a projetos de infraestrutura extrativista, e o bloco protagonizou derrotas significativas para a humanidade.
Todas essas contradições evidenciam a ausência de um horizonte alternativo ao capitalismo nas nações que disputam o poder hegemônico do sistema-mundo capitalista. Os movimentos sociais devem, portanto, assumir um papel central na pressão por um projeto verdadeiramente antissistêmico. Para que um projeto anti-imperialista seja viável, é necessário, além de propor formas não capitalistas de organização do trabalho e da natureza, rediscutir profundamente o que significa imperialismo para a esquerda hoje. E, para isso, não podemos esquecer Rosa Luxemburgo e Lênin!
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- Essa relação é abordada com maestria no novo livro do professor Luiz Marques, “Ecocídio – Por uma agricultura da vida”, da editora Expressão Popular. ↩︎
- Conceitos extraídos de “As Fronteiras do Neoextrativismo na América Latina” de Maristella Svampa, editora Elefante e “Brasil Made in China” de Camila Moreno, publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo. ↩︎
- Ver “Brics Investment in Africa: More of the Same” de Ana Garcia. ↩︎
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Coordernador da Rede Livres, Militante Ecossocialista do Fortalecer o PSOL e doutorando em Economia Política Mundial (UFABC).






