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Dois lados da mesma política: Governo Lula e Banco Central na arquitetura da estagnação

O debate público brasileiro insiste em vender a imagem de um conflito entre o governo federal e o Banco Central. De um lado, a retórica crítica de parte dos ministros, parlamentares e figuras históricas do PT contra os juros altos; de outro, uma autoridade monetária “autônoma” que segue elevando a Selic sob o argumento da estabilidade de preços. Mas essa narrativa, embora politicamente funcional, não resiste à análise concreta da política econômica em curso. Por trás do ruído, há harmonia. O Banco Central não age contra o governo Lula – age com ele.

O que se apresenta como divergência é, na verdade, uma divisão de tarefas. Uma parte do Executivo – representada por nomes como o Secretário do Tesouro, Rogério Ceron, e o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad – fala diretamente com o mercado, sustenta metas de inflação rígidas, promove cortes e defende a necessidade de “ajudar o Banco Central” com uma política fiscal contracionista. Já outra parcela do governo – figuras como José Dirceu e setores mais próximos da base partidária – dirige-se à militância com uma retórica crítica, denunciando a taxa de juros, o impacto na dívida pública e o bloqueio ao crescimento.

É a clássica coreografia do good cop, bad cop. Enquanto uma ala do governo opera tecnicamente a contenção da economia, a outra dramatiza resistência, mantendo o laço com a base social e protegendo o Executivo do desgaste político. Mas a política concreta – aquela que define metas, vota arcabouços, nomeia presidentes do BC e contingencia orçamentos – é unificada.

A escolha da meta de inflação em 3% é o exemplo mais revelador. Quem define essa meta é o Conselho Monetário Nacional, onde o governo tem maioria. A decisão, portanto, foi política – e do Executivo. E essa meta, sabidamente incompatível com a estrutura produtiva brasileira, serve como justificativa automática para o Banco Central manter os juros elevados, mesmo com a inflação em queda. O próprio José Dirceu, em entrevista recente, reconheceu:

“A inflação está fora da meta porque é irreal. Três por cento num país como o Brasil é irreal. […] A meta era 4%, 5,5% ou 2,5%.”


Dirceu classificou a taxa de juros como “um crime”. E, de fato, uma Selic a 14,75% representa uma das maiores taxas reais do mundo, funcionando como um potente mecanismo de transferência de renda dos cofres públicos para o setor financeiro, via pagamento de juros sobre a dívida. Mas o que sua retórica crítica omite é que essa taxa não se sustenta sozinha – ela é reforçada e legitimada pela política econômica do próprio governo.

É a clássica coreografia do good cop, bad cop. Enquanto uma ala do governo opera tecnicamente a contenção da economia, a outra dramatiza resistência, mantendo o laço com a base social e protegendo o Executivo do desgaste político

Ao aceitar a meta irreal de 3% e ao desenhar um arcabouço fiscal que limita estruturalmente o gasto público, o governo consolida a lógica do Banco Central. A contenção dos investimentos, a compressão dos pisos constitucionais e os contingenciamentos sucessivos atuam diretamente sobre a demanda agregada, funcionando como braço auxiliar da política monetária no esforço de esfriar a economia e manter o desemprego em um patamar “funcional”. A justificativa é conhecida: evitar que a atividade “superaqueça”, que os salários subam e que a inflação ameace escapar da meta. Em outras palavras, política fiscal e monetária caminham juntas para manter a economia girando abaixo do seu potencial – com pleno conhecimento e consentimento do Executivo.

A nomeação de Gabriel Galípolo para o comando do Banco Central escancarou esse compromisso. Vendido como nome técnico e “dialogável”, Galípolo iniciou sua gestão com sinalização dura: na primeira reunião sob sua liderança, a Selic foi elevada em 1 ponto percentual – mais do que os 0,5 ponto das reuniões conduzidas por Campos Neto. Nenhuma ruptura. Nenhuma transição. Apenas a ortodoxia com nova assinatura.

A política fiscal segue o mesmo desenho. O Novo Arcabouço Fiscal, idealizado por Haddad e Ceron, institucionaliza a compressão do gasto público. E mais: transforma o próprio crescimento das receitas em problema. Como os pisos constitucionais de saúde e educação são vinculados à receita, e o teto de gastos é limitado a 70% do crescimento real da arrecadação, quanto mais a economia cresce, mais os pisos sobem – e menos sobra para o restante do orçamento. O resultado é uma máquina orçamentária travada, que pune qualquer impulso de dinamismo econômico.

Apesar disso, a economia tem resistido mais do que os arquitetos da contenção desejariam. Desde 2021, o PIB brasileiro cresce acima do chamado produto potencial estimado pelo próprio Ministério da Fazenda (algo entre 2,3% e 2,5%). A taxa de desemprego caiu de quase 15% em 2021 para menos de 8% em 2022 – e continuou em queda nos anos seguintes. Mas essa melhora não é resultado da política atual, nem da anterior. É resíduo direto da injeção de demanda e dos programas emergenciais implementados durante a pandemia, que deixaram um impulso distributivo ainda em curso. O esforço do atual governo, desde que assumiu, tem sido o oposto: esfriar a economia, conter o emprego e neutralizar esse impulso.

O reconhecimento disso é explícito. Em janeiro de 2025, o Secretário do Tesouro afirmou:

“Há uma necessidade de desaceleração para garantir que não tenhamos um descolamento do processo inflacionário.”

Traduzindo: é preciso conter a atividade econômica para que a inflação converja à meta. E se, para isso, for necessário manter o desemprego elevado, cortar direitos, contingenciar gastos sociais e desidratar a capacidade do Estado, assim será.
Essa política não decorre de erro, nem de imposição externa, tampouco de um suposto conflito institucional. Trata-se de uma aliança estratégica entre governo e autoridade monetária para aplicar o núcleo duro da política macroeconômica neoliberal.

Traduzindo: é preciso conter a atividade econômica para que a inflação converja à meta. E se, para isso, for necessário manter o desemprego elevado, cortar direitos, contingenciar gastos sociais e desidratar a capacidade do Estado, assim será.

O objetivo não é crescimento – é controle. Não é distribuição – é contenção. Não é enfrentamento ao rentismo – é sua manutenção sob nova gestão.

A esquerda que se apega à ideia de que “o problema é o Banco Central” está lutando contra os efeitos, não contra as causas. O verdadeiro conflito não é entre governo e BC – é entre projeto de país e projeto de classe. E enquanto esse segundo seguir intacto, travestido de responsabilidade e eficiência, todo o resto é distração.

  • Doutor em Economia pela UnB e Assessor Técnico na Câmara dos Deputados