A chamada Bancada da Bíblia ganhou protagonismo no Congresso Nacional com seu discurso em defesa da moral, da família e dos chamados “valores cristãos”. Apresentam-se como fiéis representantes de Deus na política. Mas, ao que parece, representam muito mais o poder do que o evangelho – e muito mais o Pix do que a Bíblia.
A prática tem sido clara: em nome da fé, garantem apoio a governos em troca de cargos, emendas e vantagens. É o velho toma-lá-dá-cá vestido de santidade. Assim surgiu o apelido irônico: Bancada do Pix. Trocam-se versículos por votos, púlpitos por palanques, bênçãos por transferências eletrônicas. E o povo, esse sim cheio de fé, é deixado de lado enquanto alguns engordam suas estruturas de poder.
Essa contradição entre discurso e prática escancara o uso político da religião. Muitos dos que se dizem porta-vozes de Deus atuam, na verdade, como operadores de um projeto de dominação. São moralistas de ocasião, votando contra direitos das mulheres, da juventude, das minorias e dos mais pobres. Espalham preconceito com linguagem bíblica. Pregam prosperidade, mas só prospera o próprio bolso.
Não é novidade que o nome de Deus seja usado para justificar interesses terrenos. Mas o descaramento chegou a níveis quase cômicos. Fala-se em “reino de Deus” no Congresso, mas na prática o que se vê é um reinado de privilégios. E assim, com um inglês mal ensaiado, muitos ecoam a frase que virou marca da hipocrisia: “Of the King, the Power, the Best” – como se fossem os escolhidos divinos em meio à lama da política. Na tradução livre do cinismo: “Do Rei, o Poder, o Melhor (pra mim)”.
Mas Jesus, quando confrontado sobre a relação entre fé e poder, deixou clara a separação: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21). Ou seja, o sagrado não deve ser confundido com os interesses do Estado. Fé não se negocia. Crença não deve servir para barganha política. E Deus não deve ser invocado para justificar privilégios.
Infelizmente, o que se vê é o uso descarado das igrejas como currais eleitorais. Pastores e líderes religiosos se transformam em cabos eleitorais. Políticos sobem ao púlpito não para orar, mas para pedir votos. A religião, que deveria acolher, virou moeda eleitoral. A espiritualidade popular é explorada por quem se diz servo, mas se comporta como patrão.
Apresentam-se como fiéis representantes de Deus na política. Mas, ao que parece, representam muito mais o poder do que o evangelho – e muito mais o Pix do que a Bíblia.
Não se trata de atacar a fé nem a religião. Trata-se de defender a separação entre religião e Estado, como garante a Constituição. A verdadeira fé não precisa de gabinete, nem de cargo comissionado. A espiritualidade sincera anda de mãos dadas com a justiça, a humildade e o serviço ao próximo – não com acordos escusos ou projetos autoritários.
A Bancada do Pix, travestida de santidade, é um projeto de poder. Enquanto o povo sofre nas filas dos hospitais, sem escola decente e sem segurança, esses “representantes de Deus” seguem bem alinhados com os cofres públicos e os interesses dos poderosos.
É preciso dar nome às coisas: isso não é fé. É oportunismo. Não é evangelho. É negócio. Não é moral cristã. É conveniência. E quando tudo isso é dito em nome do Altíssimo, com direito a inglês improvisado e teatral, o resultado é tragicômico: “Of the King, the Power, the Best” – para os mesmos de sempre.
Que o povo, com sua fé verdadeira, saiba discernir entre quem vive o evangelho e quem apenas o explora. E que jamais se esqueça das palavras de Jesus: a César, o que é de César. A Deus, o que é de Deus.
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Cientista Social, foi sindicalista, atuou por 16 anos na Câmara dos Deputados e foi diretor da Fundação de Assistência Social de Porto Alegre, foi dirigente do PSOL de Goiás e do PSOL nacional.