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A esquerda e o novo que tarda a nascer

“O velho mundo está morrendo; o novo tarda a nascer; nesse lusco-fusco, surgem os monstros.”
Antonio Gramsci

Nada obstante a péssima gestão da crise da Covid-19, nada obstante a retórica extremista (especialistas sempre disseram que é no centro do espectro político que se colhem mais votos), nada obstante haver, no fim das contas, perdido a disputa para Joe Biden, o magnata Donald J. Trump consagrou-se em 2020 como o segundo candidato mais votado da história das eleições presidenciais dos EUA. Mesmo derrotado, conseguira ampliar significativamente sua votação, amealhando mais de 74 milhões de votos, contra os quase 63 milhões que conquistara na vitória de 2016.

Mais que isso: a invasão do Capitólio, em janeiro de 2021(inspiração para a intentona bolsonarista de janeiro de 2023), mostrou que o bilionário lograra êxito ao fazer do exercício da presidência uma campanha eleitoral permanente e, com um discurso repudiado tanto pelos chamados “liberais” quanto pela direita mainstream, transformar boa parte de seus eleitores em seguidores fanáticos, muitos deles dispostos a enfrentar a prisão e até a morte para expressar seu descontentamento com o establishment político e defender seu ideal supremacista.

De onde quer que se olhasse, portanto, era possível perceber que a serpente, mesmo sofrendo um revés momentâneo, não estava morta. Pelo contrário, seguia muito viva.

Consagrado por uma vitória inquestionável contra Kamala Harris em 2024, Trump volta à Casa Branca neste 2025 disposto a fazer História: sua posse foi, provavelmente, o momento de maior expressão do ideário fascista desde a Segunda Guerra Mundial, e desde então sua mais importante conquista política. Houvesse dúvidas quanto a esse caráter, elas teriam sido dissipadas pelas saudações praticadas no evento por Elon Musk, oligarca nascido em um berço de apoiadores do apartheid sul-africano, que jamais fez segredo de sua filiação ao nazifascismo.
A extrema direita, hoje, comanda a Roma moderna: um império econômico-territorial em expansão, o maior complexo militar já conhecido, a preeminência ideológica condicionando os valores de grande parte da humanidade.

No discurso, Trump, herdeiro de uma fortuna multimilionária, defendeu o mito da “meritocracia”; exprimiu sua conhecida plataforma racista contra os imigrantes da periferia (filho de uma imigrante escocesa, casado com uma tcheca e depois com uma eslovena, o republicano sabe bem distinguir os “indesejáveis”) e reiterou seu compromisso com a transfobia.

Produto do establishment, contra o qual induziu seus eleitores a supor estarem investindo, reiterou seus compromissos com a elite financeira. Mais que isso, o magnata condenado e sentenciado pela Justiça de seu país parece ter ouvido o conselho de Maquiavel (“quando for praticar o mal, faça-o de uma vez só”), também seguido por Adolf Hitler em 1933: Nas dezenas de revogações e ordens executivas que assinou no dia mesmo da posse (algo assim como um pacote anti-humanidade, anti-civilização), o novo presidente se descomprometeu com garantias mínimas de proteção a imigrantes e refugiados (a retomada da separação de famílias na fronteira é um dos itens); retirou os EUA do Acordo de Paris sobre Mudança Climática; reincluiu Cuba na fraudulenta lista de “países apoiadores do terrorismo”; retirou os EUA da Organização Mundial da Saúde; revogou a expansão do Obamacare; cancelou regulações trabalhistas; autorizou a exploração mineral em terras indígenas; ampliou o orçamento de defesa dos EUA (bem como a presença militar na Ásia-Pacífico), e por aí foi.

Outrora fiel ao pendor isolacionista dos republicanos (em sua primeira gestão, manteve-se muito aquém do índice de bombardeios autorizados pelo festejado Barack Obama), Trump agora se mostra mais disposto a condenar o mundo a um conflito bélico numa escala cujas consequências são imprevisíveis. Expressão política de um império em declínio, a plataforma política é o reflexo de um capital disposto a confrontar a massa trabalhadora, revogando as concessões que as lutas sindicais lhe impuseram desde a Revolução Industrial, e de um Estado que, impossibilitado de moldar a ordem mundial, não mais se compromete, sequer na retórica, com o multilateralismo (que tem como pilar a busca da paz).

Aos festejos sombrios não faltaram conhecidas figuras e figurinhas da extrema direita brasileira (uns poucos convidados e outros muitos penetras), pondo em relevo uma subserviência salivante e bovina, digna daquilo que Carl Sagan chamaria de “glorificação da estupidez”. Em “missão oficial”, parlamentares e políticos menores foram a Washington expressar sua adesão irrestrita ao lema-ameaça “Make America Great Again”, e não devem ter-se incomodado com o desdém pelo Brasil demonstrado por Trump na coletiva de imprensa. O governador de SP, Tarcísio G. de Freitas, presidenciável segundo o Estadão e a Folha de S. Paulo, manifestou nas redes seu entusiasmo com a posse do guru (“o governador é um patriota, mas não sabe direito qual é a pátria dele”, escreveu, sagaz, um leitor à Folha).

O encontro da alienação com o complexo de vira-lata produz sempre um néscio.
A buliçosa articulação neofascista, que vai muito além do jocoso e do pitoresco (projeto econômico-militar de hegemonia mundial que é), deve nos alertar para o risco, palpável, de um novo mergulho do nosso país nas trevas do obscurantismo, de que mal escapamos em 2022.

Chegamos, hoje, ao fim da chamada democracia liberal; término da experiência socialdemocrata; vitória do liberalismo associado ao autoritarismo; encerramento da ordem global que se seguiu à queda da URSS. Nesse cenário, desafiadoramente grave sob todos os ângulos, navegamos nós (navega o Brasil e navega o governo), tateando em meio a nevoeiro cerrado, carente o país de um projeto de povo e nação para dizer o que é e o que pretende ser, carente o governo de um programa político, carente a esquerda da noção clara de seu papel, carente o povo de uma luz no horizonte prometendo novos tempos por serem lavrados. Não sabe o governo, não sabemos nós, que país queremos construir, porque a esquerda brasileira, juntando suas limitações próprias às limitações decorrentes da crise do movimento socialista no mundo, desfez-se de suas utopias, e renunciou ao movimento.

A principal e certamente a mais grave das deficiências é a ausência de projeto norteador do que fazer

Joga na expectativa de que o processo social faça a revolução.
Como todo colonizado ideológico, copiamos o modelo econômico-político de exclusão lucrativa, e assim, hoje, a esquerda, tomando a si o projeto da socialdemocracia vencida, trabalha com afinco na moldagem de um capitalismo suportável. O ponto de partida é ignorar a luta de classe, e compreender a desigualdade social como fenômeno natural. Supondo que assim assegura sua sobrevivência, nosso campo evita o confronto, depois de evitar a batalha ideológica, e opta pela composição, que exige a renúncia a valores e objetivos.

Nosso governo, originário da centro-esquerda, mas condicionado por uma composição eleitoral que lhe impôs um ministério sem definição, mas essencialmente à sua direita e à direita do pronunciamento eleitoral, carece de organicidade, padece nas limitações de comando e coordenação. A indefinição política determina a fragilidade operativa, de que se ressente quando não tem condições de responder aos compromissos de campanha.
Perdidas as ilusões da campanha de 1989 e do governo eleito em 2002, o lulismo sonhou com o reformismo, mas nem tanto ou nem tão pouco lhe é concedido, pois a correlação de forças – ditada pelo quadro político-social no qual avança o atraso, e a fragilidade dos partidos de nosso campo e o recesso do movimento popular – não lhe possibilitou senão o imperativo das alianças com a direita tradicional e com a maioria conservadora do Congresso, sem o qual não pode governar, e para fazê-lo é obrigado a dobrar-se, dependente de maiorias ocasiões compradas a preço de ouro e ao custo de renúncias programáticas.

Em seu labirinto, Lula ainda enfrenta a resistência do grande capital e as instabilidades da quadra internacional, o avanço do neofascismo, o avanço do sionismo expansionista, e agora o novo governo Trump, sublinhando as incertezas e os temores mais justos sobre o desenvolvimento e fecho da disputa pela hegemonia planetária, pondo em confronto irrefreável o imperialismo declinante e a Eurásia.

É em face dessa realidade que o Brasil precisa de forças para definir seu espaço.
Os seguidos tropeços do governo na comunicação são apenas a face mais visível de sua crise, e o primeiro gerador de problemas são as dificuldades da coordenação política, comprometendo a efetividade da ação governamental. A principal e certamente a mais grave das deficiências (quando caminhamos para o terceiro ano do mandato) é a ausência de projeto norteador do que fazer.

À falta de um projeto de país e, dela decorrente, de um projeto de governo, e tomando a correlação de forças como um dado inabalável, uma lei da natureza, estamos condenados a fazer como se nosso fosse o programa dos nossos adversários, a um custo elevadíssimo, seja político ou não: hoje, parlamentares da amorfa base fisiológica do Congresso são regiamente recompensados para aprovar propostas de seu próprio interesse – os quais, obviamente, contrastam com os interesses das grandes massas e dos trabalhadores de um modo geral, os contingentes da população que nossos partidos pretendem representar.

Eis um desarranjo a exigir corrigenda sem tardança, tanto mais por estarmos às portas de um pleito tão decisivo quanto desafiador (“2026 já começou”, alertou o presidente Lula a seus ministros), e num momento em que a conjuntura internacional se torna mais adversa do que já era. Com olhar no prazo mais longo, precisamos refletir se o papel da esquerda é este que aí está: gerir a economia capitalista, buscando torná-la sustentável, e suportável para a maioria.

Neste mesmo mundo convulso, em que a superpotência dobra sua aposta no belicismo e as ameaças externas se metamorfoseiam, assumindo a forma de guerras híbridas e ataques cibernéticos, o Brasil se dá ao luxo de renunciar a uma política de Defesa. Pior: não tem sequer ministro, eis que o atual não se peja de se apresentar e atuar como porta-voz da caserna – ou, antes, da cúpula retrógrada das chamadas forças armadas do Estado brasileiro, saudosa dos anos de chumbo. São essas forças brancaleônicas que nos brindam, hoje, com o plano de uma “grande ação militar” nas proximidades da fronteira com a Venezuela, ideia de jerico ventilada na imprensa e ainda aguardando desmentido.

Tudo isso desloca do centro a questão fundamental, que o governo parece ainda não ter apetite para enfrentar: a definição do que entendemos como soberania e defesa estratégica, de que forças armadas carece o Estado brasileiro, e de que soldado necessitam essas forças. A escolha e permanência do atual ministro mostram que o governo não está atento a esses requisitos. O fato objetivo é que a democracia perdeu mais uma oportunidade histórica de intervir em questão tão crucial para a construção de uma sociedade livre e soberana.

[O governo] se deixou imolar e por um austericídio ideológico e frontalmente contrário ao programa eleito nas urnas

Na Economia, o governo foi engolfado ou se deixou engolfar pela cantilena ideológica do ajuste fiscal, e assim se deixou imolar e por um austericídio ideológico e frontalmente contrário ao programa eleito nas urnas de 2022, reproduzindo os mitos mais desgastados de que se valem os operadores da ciranda financeira, como o da “fada da confiança” (basta o governo fazer um ajuste fiscal rigoroso, demonstrando a sustentabilidade da dívida pública, para os investidores, confiantes, despejarem investimentos, fazendo o país crescer) e a “analogia da dona de casa” (o governo não pode gastar mais do que arrecada). O ministro da Fazenda pede “empenho coletivo para recuperar o superávit primário” e amaldiçoa como herança maldita os gastos sociais exigidos pelo campo democrático (como sejam o Novo Fundeb, o auxílio emergencial e os reajustes do Bolsa Família).

Vencedores nas urnas, seguimos, contudo, comprometidos com o ideário liberal do campo adversário, elitista por definição, e com a manutenção de uma autoridade monetária que, no contrapelo dos interesses do país, simplesmente decide os destinos da economia reproduzindo o ditado do sistema financeiro. Nesse quadro, dá-se este contraste inquietante: enquanto a extrema direita, mesmo quando erra (em seus próprios termos), mantém diálogo estreito com sua base, a esquerda institucionalizada permanece alienada de sua base mesmo quando acerta.

Os neofascistas têm um projeto já pronto, bastando decalcá-lo de sua matriz ideológico-política, com as adaptações devidas. A esquerda precisa, antes tarde do que muito tarde, implementar um projeto de avanço que a sociedade reconheça como seu. Projeto que tem de estar assentado no crescimento econômico sustentável, com distribuição e redistribuição de renda.
O tempo urge.

  • Mestre em Relações Internacionais e Doutor em Letras (PUC-Rio)

  • Escritor, cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia