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A corrida do ouro e a inflexão ansiada

Está em cartaz nos cinemas brasileiros a cópia restaurada, recentemente exibida em Cannes, do clássico “Em busca do ouro”, de Charlie Chaplin, que chega ao seu primeiro centenário. O genial ator e diretor britânico, responsável por ao menos 80 produções cinematográficas (muitas das quais incluídas entre os momentos mais marcantes da história do cinema), teria dito que este é o filme pelo qual gostaria de ser lembrado. E é fácil entender por que: tecnicamente impecável, “The Gold Rush” representa à perfeição a capacidade de unir comédia pastelão e drama pungente que tornou célebre o criador de Carlitos.

A trama, bastante conhecida após tantos anos, mostra o adorável vagabundo revivendo a histórica busca do ouro de Klondike, no Alasca, que no final do século 19 atraíra centenas de aventureiros em busca da fortuna repentina. Diante da cena inaugural, que exibe um formigueiro humano deslizando lentamente contra uma brancura sem fim, arriscando suas vidas na passagem de Chilkoot (que precisavam atravessar para chegar à terra prometida), é difícil não pensar na corrida do ouro que, quase um século mais tarde, atrairia milhares de garimpeiros a Serra Pelada, no Pará, e que rendeu registros memoráveis pelas lentes de Sebastião Salgado.

Entre as tantas cenas marcantes de “Gold Rush”, que atravessam gerações, temos a do repasto de sapato cozido; a da dança dos pãezinhos espetados em garfos; a do garimpeiro que, delirando de fome, vê Carlitos transformado numa enorme galinha; a do barracão que oscila à beira de um abismo; a dolorosa noite solitária de ano-novo do sonhador maltrapilho, e por aí vai. Solidão, miséria, amor, ganância e o ridículo da condição humana… tudo se mistura no clássico imortal.

E é precisamente a ganância que me salta aos olhos ao ler o artigo “O burocrata”, de Camille Lichotti (Piauí, junho de 2025), que aborda outra corrida do ouro, a que tem se dado no Congresso brasileiro em anos recentes, e que se traduz na captura, por suas excelências, de parcelas crescentes do orçamento público, garantindo brechas para que o nome do santo permaneça oculto, em desafio aberto à transparência exigida pela Lei Maior.

Entre as novidades introduzidas por deputados e senadores em seu avanço às minas do erário, estão a impositividade das emendas individuais e de bancada (logo inscrita na Constituição, sempre alterada ao gosto da maioria ocasional), que limitam a margem de manobra do governo federal, e a imaginativa invenção de coisas como “transferências especiais” e “emendas de relator”, que permitem o envio da grana sem que o pai da criança apresente sequer um projeto para a aplicação dos recursos.

A farra desconhece limites: “com o arcabouço legal alterado diversas vezes, o volume das emendas parlamentares cresceu, em termos nominais, mais de 400% na última década”, informa Lichotti, que sintetiza o drama (a crise institucional que atravessamos, na passagem do presidencialismo de coalizão para um parlamentarismo sem divisão de responsabilidades) com esta pérola de um consultor do Senado: “Em matéria orçamentária, o Congresso percebeu que era um elefante amarrado num pé de alface”.

Do lado de lá do Atlântico, chegam ruídos de outro carnaval fora de época: com a presença de cinco ministros do STF, 18 do STJ, cinco do TCU, dezenas de parlamentares e mais ministros de estado, secretários e governadores, mesclados a uma gama de negociantes, teve lugar na última semana mais uma edição do “Fórum de Lisboa”, ode à promiscuidade institucional promovida por um empresário e político com assento no STF. Uma farra que a crônica nacional batizou, jocosamente, de “Gilmarpalooza”.

Naturalizado pela imprensa nativa, tão ciosa do decoro e da moralidade noutras circunstâncias, o Fórum explicita sua vocação colonial já na escolha da sede (afinal, por que nossas autoridades gostam tanto de debater problemas brasileiros em cidades estrangeiras com boas redes de hotéis 5 estrelas? Quem paga essa conta?). Na programação, atrações como um debate sobre “relações de força internacionais” entre um almirante português, o ex-comunista Raul Jungmann e o governador Tarcísio de Freitas, pré-candidato da classe dominante à presidência do Brasil.

Neste cenário, em que míngua a margem de manobra do Poder Executivo para realizar os objetivos inscritos na Constituição – pois a ganância dos exploradores que viajam semanalmente a Brasília se soma à de especuladores que se assombram com qualquer melhora dos níveis de emprego e renda – e a cúpula do Judiciário mostra, desavergonhadamente, de que lado está, o governo Lula III caminha para seu epílogo tendo cada vez menos o que perder (seus grilhões, talvez?), e cada vez menos motivos para apostar na quimera da conciliação.

A resposta em uníssono da oligarquia da comunicação (a Folha de SP, por exemplo, acionou Campos Neto, que agora defende o grande capital no Nubank, e não mais no Banco Central do Brasil), à campanha “Nós contra eles”, que esbanjando criatividade expôs, nas redes, a velha e onipresente luta de classes, mostrou de maneira inequívoca o acerto da tática improvisada: os donos do poder, enfim, se incomodaram com alguma coisa. Resta ao governo federal aproveitar a oportunidade para fazer a inflexão que dele tanto se espera, apostando menos nos acordos de gabinete e na benevolência de seus carcereiros, e passando a ter “um pé no palácio e outro nas ruas”, como pede o ex-deputado José Genoíno.

Um bom início de conversa, uma sinalização inspiradora,  seria a revogação imediata do infeliz Decreto nº 12.534/2025, que, para atender à insaciável sanha austericida da Faria Lima, veda o acesso de cerca de um milhão de pessoas ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), esta conquista da sociedade brasileira, nascida naquela efervescência democrática da Constituinte de 1987-88 que precisamos, nalguma medida, reeditar.

  • Mestre em Relações Internacionais e Doutor em Letras (PUC-Rio)