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O consenso como arma: lulismo, neoliberalismo e a economia da desmobilização

A disputa sobre a caracterização da essência do lulismo não é apenas um debate teórico, mas uma batalha ideológica com impactos diretos na formulação tática de partidos e organizações de esquerda. No governo Lula 3, que atinge a metade de seu mandato, essas discussões ganham novo fôlego, organizando-se em torno de três caracterizações principais: duas que negam o caráter neoliberal do governo e uma terceira que o desnuda como essencialmente neoliberal. A primeira interpretação enxerga o lulismo como um projeto social-desenvolvimentista, enquanto a segunda o vê como um reformismo fraco que, embora obstrua transformações mais profundas, colocaria um freio no avanço neoliberal. Já a terceira, conectada à realidade concreta, expõe o lulismo como uma expressão de neoliberalismo progressista ou social-liberalismo, uma variante ideológica do neoliberalismo que mascara a exploração com um verniz inclusivo.

Na primeira caracterização, o lulismo seria movido pela elevação da renda dos mais pobres, por meio de políticas como a valorização do salário mínimo, a ampliação de transferências de renda e a expansão de serviços públicos, além de ser descrito como keynesiano e comprometido com o crescimento, a redução das desigualdades e o combate ao subdesenvolvimento.

No entanto, essa interpretação, quando confrontada pela realidade concreta do governo Lula 3, que adota políticas abertamente neoliberais, transfere os limites estruturais da política econômica para fatores externos, como a correlação de forças no Congresso ou a atuação de Campos Neto no Banco Central. Essa perspectiva, ao deslocar a responsabilidade para pressões externas, absolve o lulismo de suas escolhas estruturais e apresenta os retrocessos como inevitáveis. Ao negar qualquer caráter neoliberal ao projeto, essa narrativa opera como ferramenta ideológica que protege o governo de críticas à sua essência, ao mesmo tempo em que desmobiliza a classe trabalhadora.

A prática concreta, porém, desmente essa visão idealista. O governo Lula 3 tem sido protagonista de ataques estruturais contra a classe trabalhadora, como as ofensivas contra o salário mínimo, o abono salarial e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), enviadas diretamente ao Congresso. Para garantir apoio, recorreu a práticas condenáveis, como a liberação de 4,2 bilhões em emendas do orçamento secreto. Apesar disso, a resistência popular conseguiu barrar parcialmente alguns desses ataques, demonstrando que a luta de classes permanece como força viva. Essa contradição desmascara a primeira caracterização como uma construção propagandística que encobre a realidade de um projeto que, longe de enfrentar o neoliberalismo, o reforça, legitimando a exploração com discursos de progresso social.

Uma segunda caracterização – de certa forma aderente à caracterização de André Singer sobre os sentidos do lulismo – possui maior seriedade e honestidade com o debate, mas, ao mesmo tempo, tem se revelado limitada e meramente conjuntural diante dos governos Dilma 2 e Lula 3. Essa abordagem descreve mais um momento do lulismo do que sua essência, considerando que a natureza e o compromisso do lulismo residem na busca pela redução das desigualdades e no combate à pobreza, porém sem enfrentar ou alterar as estruturas da ordem capitalista. Em outras palavras, trata-se de reduzir desigualdades dentro dos limites impostos pela própria ordem.

Negar qualquer caráter neoliberal do Lula 3, protege o governo de críticas à sua essência, ao mesmo tempo em que desmobiliza a classe trabalhadora

Nesse sentido, o lulismo manteria elementos da macroeconomia neoliberal como concessão ao capital e instrumento de manutenção da ordem, mas, ao mesmo tempo, incluiria elementos que impõem um freio ao neoliberalismo e promovem políticas de combate à pobreza, voltadas especialmente à base de apoio do lulismo, composta por trabalhadores que ganham até dois salários mínimos. Essa caracterização também nega que o lulismo tenha um caráter fundamentalmente neoliberal, sustentando que as políticas de redução de desigualdades promovidas em seus governos são incompatíveis com um neoliberalismo puro, que favorece o aumento das desigualdades.

Portanto, diante do primeiro obstáculo estabelecido pela ordem, o lulismo recua. A intenção de reduzir desigualdades existe, mas, ao se chocar com o objetivo de evitar confrontos e preservar a ordem, recua. Assim, a essência do lulismo está em buscar a redução das desigualdades dentro dos limites permitidos, mas sempre esbarrando na manutenção da ordem como uma restrição.

Nesta linha, para André Singer, o lulismo é um modelo de mudança dentro da ordem. Como ele argumenta em seu livro Os Sentidos do Lulismo (2012), referindo-se aos dois primeiros governos Lula: “A opção de Lula pelos mais pobres revelaria não ser correta a avaliação que vê um ‘caráter completamente neoliberal do seu governo’, pois uma das características do neoliberalismo é favorecer o aumento da desigualdade.”

Por outro lado, os governos Dilma 2 e Lula 3 evidenciam os limites dessa interpretação. Especialmente no governo Lula 3, como veremos, foi imposta uma estrutura de política econômica de ataque permanente aos mais pobres que recebem até 2 salários mínimos e de restrição severa dos investimentos públicos. Portanto, a caracterização mais correta do lulismo, então, é de um neoliberalismo progressista no sentido de Nancy Fraser, ou da variante ideológica do neoliberalismo chamada de social-liberalismo, onde promove-se um sincretismo entre o mercado e o Estado, apenas imaginariamente capaz de instaurar a justiça social. O neoliberalismo progressista dá centralidade às ideias de “diversidade”, “empoderamento” das mulheres, direitos LGBTQ, pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo, mas sempre subordinando essas bandeiras à lógica do mercado.
Tanto nas caracterizações de neoliberalismo progressista quanto na de social-liberalismo, as bandeiras históricas da esquerda socialista são cooptadas e esvaziadas para construir um consenso que serve exclusivamente aos interesses das classes dominantes. O governo Lula 3 exemplifica essa lógica ao mobilizar um discurso de combate à pobreza como justificativa para políticas que, na prática, aprofundam desigualdades e fragilizam ainda mais a classe trabalhadora. A direção da política econômica adotada pelo governo em 2023 e 2024 confirma, de forma inequívoca, essa caracterização, consolidando o lulismo como gestor de um sistema que perpetua a exploração sob a fachada de progresso social.

No governo Lula 3, a direção estrutural do projeto econômico é, justamente, de ampliação da desigualdade no médio e longo prazo, com consequências devastadoras para os que ganham até dois salários mínimos. Aqui cabe um parêntese inicial: alguns podem alegar que os dados do governo Lula 3 mostram crescimento muito acima do esperado pelo mercado, queda do desemprego e ampliação da massa salarial, o que, segundo essa lógica, provaria que o governo não seria neoliberal. No entanto, uma análise cuidadosa revela que tais argumentos não se sustentam. Por exemplo, o desemprego começou a cair de forma significativa ainda no semestre encerrado em março de 2021, durante o governo Bolsonaro, período em que foi reduzido de 14,9% para 7,9%, entre março de 2021 e dezembro de 2022 – uma queda de sete pontos percentuais. No governo Lula 3, o desemprego caiu de 7,9% para 6,1%, uma redução de apenas 1,8 pontos percentuais. Da mesma forma, o crescimento econômico tem estado acima dos 3% desde 2021, contrariando as expectativas pessimistas do mercado.

O lulismo, em sua essência, é um projeto neoliberal com aparência progressista, útil para conquistar o consenso da classe trabalhadora e legitimar políticas que favorecem o capital

Se esses dados conjunturais fossem suficientes para caracterizar o governo Lula 3 como não neoliberal, seria igualmente necessário concluir, de forma absurda, que o governo Bolsonaro também não foi neoliberal – algo que é evidentemente insustentável. Esses indicadores conjunturais encontram explicação em uma política fiscal expansionista implementada no pós-pandemia, um recuo tático do capital para salvar a si mesmo em meio à crise. É nesse contexto que se insere a tarefa do governo Lula 3: reverter essa trajetória fiscal expansionista e esfriar a economia, objetivo central do Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Essa intenção é explicitamente declarada pelo próprio governo em diversas ocasiões. Como ocorre historicamente, nas crises, o capital recorre ao Estado keynesiano para se salvar; quando a normalidade é restabelecida, a austeridade volta a ser a regra. O governo Lula 3, portanto, opera dentro dessa lógica, e os dados de crescimento e emprego não indicam uma ruptura com o neoliberalismo, mas sua continuidade, adaptada à conjuntura.

Um breve balanço do governo de transição, iniciado após a eleição de 2022, e dos anos de 2023 e 2024 evidencia a direção desse projeto econômico. Durante o período de transição em 2022, a equipe econômica enviou ao Congresso uma minuta da chamada PEC de Transição, mantendo o teto de gastos instituído por Temer. A proposta ajustava o patamar de despesas para 170 bilhões adicionais em 2023, mas previa o retorno integral ao teto original nos anos seguintes e a permanência do congelamento dos pisos da saúde e educação.
Contudo, essa lógica foi revisada no Congresso, que aprovou uma PEC mais à esquerda que a enviada pela equipe econômica do governo Lula 3, autorizando o furo de 2023 e determinando a substituição integral do teto de Temer com a apresentação de uma nova regra fiscal em 2023. Diante dessa oportunidade, o governo enviou ao Congresso o projeto que instituiu o Novo Arcabouço Fiscal, ou Regime Fiscal Sustentável – essencialmente uma renovação da lógica do teto de gastos, ainda que levemente mais flexível. O NAF permite a expansão de despesas primárias em até 2,5% acima da inflação, com um limite de 70% do crescimento da receita, portanto foi deliberadamente desenhado para criar uma incompatibilidade matemática com despesas sociais indexadas e protegidas, como os pisos da saúde e educação, e com a valorização real do salário mínimo, caso esta ultrapasse os limites do novo teto. Essa lógica foi intencionalmente criada para gerar crises orçamentárias e pressões que justificassem futuras reformas destinadas a enfraquecer essas áreas.

Em 2024, a primeira etapa desses ataques se manifestou com o pacote de austeridade fiscal apresentado pelo governo. Entre as medidas aprovadas pelo Congresso estavam a imposição de um teto de 2,5% para o crescimento real do salário mínimo, o enfraquecimento do Fundeb, cortes no abono salarial e uma tentativa de restringir drasticamente o acesso ao BPC. Apesar de, em 2023, o governo ter anunciado o retorno da política de valorização do salário mínimo atrelada ao crescimento do PIB, essa política foi rapidamente revertida no pacote de austeridade. O novo teto para o salário mínimo trava o crescimento real, contribuindo para a manutenção da desigualdade social e favorecendo os interesses do capital na relação com o trabalho. Em relação ao abono salarial, o governo retirou o benefício daqueles que recebem entre 1,5 e 2 salários mínimos. O Fundeb também foi alvo de ataques, mas sofreu uma mitigação de danos no Congresso, que aprovou cortes menos drásticos do que os originalmente propostos pelo governo. O BPC foi outro ponto central do ataque: na proposta inicial, milhares de famílias em situação de extrema pobreza que tivessem uma pessoa idosa e outra com deficiência, por exemplo, perderiam um dos benefícios, e muitas pessoas com deficiência seriam excluídas do programa.
Além da gravidade das medidas, o governo utilizou propaganda oficial e fake news para mascarar os ataques, alegando, falsamente, que o pacote se tratava apenas de um “pente-fino” para combater fraudes. Essa narrativa criminalizou as famílias que perderiam benefícios pela mudança de regras, uma estratégia tipicamente neoliberal de justificar cortes sob o pretexto de eficiência fiscal. Mesmo pagando 4,2 bilhões em emendas para o Congresso e recorrendo a desinformação, o governo enfrentou derrotas parciais graças à pressão popular e à luta da classe trabalhadora, que conseguiu barrar os ataques mais severos ao BPC. Esses episódios revelam a lógica estrutural do governo Lula 3 e reforçam sua caracterização como um projeto de continuidade do neoliberalismo, com um verniz progressista que mascara os retrocessos impostos à classe trabalhadora.

O balanço das três caracterizações revela que o lulismo, em sua essência, é um projeto neoliberal com aparência progressista, útil para conquistar o consenso da classe trabalhadora e legitimar políticas que favorecem o capital e prejudicam os trabalhadores. Funciona como máquina de desmobilização para preservar a ordem capitalista pelo consenso, com a extrema direita como plano alternativo das elites caso esse consenso fracasse. Enquanto a primeira caracterização desmorona diante da realidade concreta, a segunda falha ao ignorar que o governo Lula 3 não apenas recua, mas aprofunda desigualdades e desmantela proteções sociais. A terceira, do neoliberalismo progressista, explica como o lulismo combina discursos inclusivos com práticas que reforçam a exploração e a desigualdade.

  • Doutor em Economia pela UnB e Assessor Técnico na Câmara dos Deputados