Os dramáticos acontecimentos vividos pela sociedade panamenha entre abril e julho de 2025 mostram, na sua mais crua realidade, as características do sistema capitalista neoliberal e decadente que rege todo o planeta. À primeira vista, poderia duvidar-se que neste pequeno país, tanto geográfica como demograficamente, se pudesse condensar a essência do mundo que coube viver à presente geração, embora, a nosso ver, uma observação atenta nos convença de que assim é. Provavelmente, isso deve-se ao fato de sermos um dos elos fracos da cadeia imperialista, mas um elo geopolítico central.
Os fatos mostram a intensidade da luta de classes e a brutalidade da resposta repressiva do governo:
1) Uma greve de professoras e professores de quase três meses, acompanhada de mobilizações diárias em todas as capitais provinciais, que termina com a suspensão salarial de milhares de profissionais e a demissão (em processo) de pouco mais de 700 ativistas, entre os quais as juntas diretivas dos principais sindicatos.
2) Uma greve dos trabalhadores bananeiros da Chiquita Brands (SITRAIBANA), que se prolongou por um mês e que culminou com a prisão do seu secretário-geral, Francisco Smith, juntamente com outros dirigentes, e o despedimento de toda a equipa de 5.000 trabalhadores por parte da transnacional.
3) Uma importante greve e mobilizações dos trabalhadores da construção civil, que paralisou por um mês as obras da linha 3 do metro do Panamá, assim como as da quarta ponte sobre o canal, e outras obras. O seu sindicato (SUNTRACS) é alvo da pior repressão sofrida pelo sindicalismo panamenho em toda a sua história: judicialização e medidas cautelares contra dezenas de ativistas e afiliados; um processo penal por parte da Procuradoria-Geral, dirigido pelo advogado pessoal do presidente da República, a partir do qual se ordena a intervenção das sedes sindicais e da cooperativa, assim como a prisão de dirigentes um deles numa prisão de máxima segurança, outro com prisão domiciliar, e dois que tiveram que se exilar.
4) Uma explosão social expressa na incorporação à luta de milhares de habitantes das comunidades rurais e indígenas mais pobres do país, em que toda a população, com os jovens na vanguarda, saiu para bloquear estradas, em particular a Interamericana, o que derivou numa violação massiva das liberdades democráticas e dos direitos humanos, como não se via no Panamá desde o Golpe de Estado militar de 1968. Primeiro fizeram-no contra a comunidade de Arimae (Darién), maioritariamente da etnia emberá, onde atiraram tanto gás lacrimogênio que as pessoas tiveram de se esconder na montanha, para além de prenderem arbitrariamente as suas autoridades tradicionais (caciques); depois, na província de Bocas del Toro, e no distrito de Changuinola, onde foram suspensas as garantias constitucionais, cortadas as comunicações e a corrente elétrica, para lançar uma caça às pessoas de casa em casa com quase 400 detidos, com todo o tipo de vexames, especialmente contra as mulheres, agressões, torturas, tiros, ameaças de morte, etc. Confirmou-se que pelo menos uma pessoa foi assassinada pelas forças policiais e há rumores de outros casos.
5) Coação de todos os níveis contra as liberdades democráticas: processos judiciais contra dirigentes estudantis; ataques reiterados à autonomia da Universidade do Panamá, acusada pelo próprio presidente de “covil de terroristas”; censura e parcialidade nos grandes meios de comunicação; repressão brutal das manifestações; etc.
Enquanto os sindicatos, associações e movimentos sociais defendem os interesses da classe trabalhadora, o governo de José R. Mulino, autodenominado “governo empresarial”, defende uma minoria capitalista voraz que suga a riqueza e o sangue da nação
Trata-se de apenas uma menção superficial, que deverá ser documentada detalhadamente por investigações independentes de direitos humanos, mas já dá conta de um confronto social (luta de classes) de grande envergadura. A luta tornou evidente para um segmento importante da população que, enquanto os sindicatos, associações e movimentos sociais defendem os interesses da classe trabalhadora, o governo de José R. Mulino, autodenominado “governo empresarial”, defende uma minoria capitalista voraz que suga a riqueza e o sangue da nação (oligarquia).
Aparentemente, o resultado do confronto parece favorável ao governo de Mulino, graças a ter-se imposto pela via da força, mas na realidade a burguesia está perante uma derrota política e moral, pois a repulsa da população à sua gestão é superior a 80%, como prova uma pesquisa do jornal La Estrella de Panamá, publicado em 30 de junho.
É um governo tão impopular, com apenas um ano de mandato, que se sustenta com o apoio da oligarquia financeira, dos seus meios de comunicação de massas, da força pública remilitarizada em conluio com o Comando Sul do exército dos Estados Unidos, ao qual servem como títeres leais.

Analisemos as reivindicações que motivaram a convocação da greve e mobilização para compreender que a classe trabalhadora e o povo panamenho travaram uma luta gigantesca e enfrentaram heroicamente três (3) pilares do sistema capitalista imperialista mundial:
1) A exigência central foi a revogação da Lei n° 462, que reforma o sistema de reformas do país, prejudicando significativamente as futuras aposentadorias, forçando de fato a um aumento da idade de reforma e permitindo ao governo usar os fundos para equilibrar as receitas estatais, em déficit graças à evasão e às exonerações de que goza a burguesia panamenha, e por sua vez permitir a exploração desses fundos pelo setor financeiro privado. Isto que aconteceu no Panamá é a mesma receita que os organismos financeiros internacionais (Banco Mundial) vêm aplicando em todo o mundo, inclusive na Europa.
2) A oposição à reabertura da mineração de cobre no distrito de Donoso, província de Colón, por parte da transnacional canadense First Quantum Minerals, cujo contrato foi rejeitado massivamente nas ruas em 2023, forçando o Supremo Tribunal de Justiça a declará-lo inconstitucional. Também a oposição à criação de uma barragem na zona do rio Indio, com a desculpa de abastecer de água o Canal do Panamá, que expulsaria vários milhares de famílias que habitam a área. Ambas as reivindicações fazem parte da luta mundial contra o “extrativismo”, uma das modalidades do capitalismo atual que destrói o meio ambiente, empobrece os habitantes, para extrair matérias-primas baratas para benefício de capitais estrangeiros. Esta luta irmana-nos com os povos indígenas do Equador, por exemplo, que lutam contra as grandes petrolíferas; ou os povos da África central, submetidos ao saque, às guerras e à miséria para que os EUA e a Europa lhes roubem suas riquezas minerais.
3) A outra importante reivindicação entoada por grevistas e moradores panamenhos é a rejeição ao chamado Memorando de Entendimento assinado pelo ministro da Segurança, Frank Ábrego, e pelo secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, por meio do qual são restituídas três bases militares norte-americanas no entorno do Canal do Panamá, que haviam sido fechadas em 1999 graças a décadas de mobilização popular consagradas nos Tratados Torrijos–Carter de 1977. Essa concessão, que fere a soberania nacional, faz parte das exigências do presidente norte-americano Donald Trump em sua guerra fria contra a China e, junto com o rearmamento da OTAN, a militarização do Mar do Sul da China, o genocídio contra o povo palestino e a reconfiguração política do Oriente Médio por parte de Israel e da OTAN, integra o esforço do imperialismo ianque para conter sua decadência.
Pode-se observar que o programa que motivou a mobilização de 2025 no Panamá transcende o caráter meramente reivindicatório, pois enfrenta três pilares que sustentam o sistema capitalista internacional: a expropriação dos fundos de aposentadoria, o extrativismo e o rearmamento militar do “ocidente”.
É muito difícil derrotar essas imposições apenas no plano nacional, pois tais políticas transcendem fronteiras e se inserem em cenários mundiais que exigem a atuação conjunta de forças sociais mobilizadas contra elas em escala planetária ou, ao menos, nos principais países imperialistas.
Pode-se observar que o programa que motivou a mobilização de 2025 no Panamá transcende o caráter meramente reivindicatório, pois enfrenta três pilares que sustentam o sistema capitalista internacional: a expropriação dos fundos de aposentadoria, o extrativismo e o rearmamento militar do “ocidente”.
A derrota do modelo neoliberal de previdência, do extrativismo e do militarismo exigirá a articulação de fatores internacionais, com os quais o movimento social panamenho deve coordenar ações. Daí a total atualidade de uma política baseada na solidariedade, no internacionalismo e, para a América Latina, na unidade bolivariana.
Às três demandas originais somam-se agora as exigências de: respeito às liberdades democráticas, entre elas a liberdade sindical e o fim da perseguição ao SUNTRACS e à sua liderança, bem como ao SITRAIBANA; anulação das sanções contra os docentes que participaram das mobilizações; restituição plena das garantias democráticas e criação de uma Comissão Investigadora Independente para apurar a verdade sobre os crimes de lesa-humanidade cometidos em Bocas del Toro e Arimae.
É evidente que estamos diante de uma disputa por outro modelo político, social e econômico completamente distinto da atual imposição antidemocrática neoliberal do sistema capitalista financeiro internacional. As três demandas não são simples reivindicações ou reformas dentro do sistema, mas atingem o cerne do capitalismo panamenho. A consequência lógica é que se faz necessário um governo diferente, com alianças sociais e políticas diferentes, caso se deseje construir um país distinto. É justamente nesse ponto que a luta social tem se mostrado mais frágil, pois a consciência dessa necessidade política ainda está difusa na maior parte da vanguarda mobilizada.
O Panamá viveu uma revolução social em três tempos: as mobilizações contínuas de 2022 (contra o alto custo de vida), de 2023 (contra a mineração) e de 2025 (contra a Lei 462, a mina e o memorando), as quais permitiram à vanguarda popular e a uma grande parte do povo panamenho perceber a necessidade de uma mudança no poder político. No entanto, ainda não se atingiu a maturidade necessária para compreender que esse projeto alternativo deve ser construído pelas próprias forças que lideraram essa heroica luta.
É urgente a constituição de uma força política que dialogue com a vanguarda dessas lutas para propor uma tarefa essencial: a construção coletiva de um projeto alternativo por um país soberano, democrático, livre do neoliberalismo econômico, com uma reforma fiscal progressiva (em que os ricos paguem impostos) e que respeite a liberdade sindical. Essa será a melhor forma de transformar o que hoje parece ser uma derrota relativa em uma vitória política para o movimento sindical e social panamenho.
Foto principal: Carolina Soto Ramos / Shutterstock
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Professor Departamento de Sociologia da Universidade Nacional do Panamá.





