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As ameaças de Trump ao Canal do Panamá, uma atualização da Doutrina Monroe

Desde 21 de dezembro de 2024, no âmbito da comemoração do 35º aniversário da última invasão militar dos EUA no Panamá (20/12/1989), o presidente dos EUA, Donald Trump, antes de assumir o cargo, iniciou uma série de declarações sucessivas ameaçando assumir o controle do Canal do Panamá pela força.

Uma atualização sobre a Doutrina Monroe

As propostas sobre o Panamá, o Canadá, a Groenlândia e o Golfo do México fazem parte da atualização de Trump da antiga “Doutrina Monroe” para o século XXI. O presidente James Monroe, em 1823, emitiu uma declaração da política externa dos EUA que ficou conhecida pelo slogan “América para os americanos”. Na época, foi um aviso às monarquias europeias que haviam formado um bloco militar chamado “Santa Aliança” de que ele não permitiria que reconquistassem os territórios recém-independentes da América espanhola. É claro que, a partir de então, ficou entendido que os “americanos” de Monroe eram os Estados Unidos, não os hispanos – ou latino-americanos.

Seguindo a Doutrina Monroe, desde o século XIX até hoje, os Estados Unidos têm agido com a convicção de que a América Latina e o Caribe são seu “quintal” e zona exclusiva de pilhagem econômica e neocolonialismo político. Inúmeras invasões, golpes de Estado e sanções econômicas contra países que tentam escapar (Cuba, Venezuela…) demonstram essa realidade, especialmente durante a Guerra Fria com a União Soviética. Instituições como a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e a Escola das Américas têm sido instrumentos dessa política externa dos EUA.

Independentemente de os governos americanos terem agido de forma flagrantemente imperialista, como foi o caso da política do Big stick (Porrete, em tradução livre) de Theodore Roosevelt, ou com a hipocrisia refinada de Franklin D. Roosevelt e sua “política de boa vizinhança”, ou com a chamada “doutrina de segurança nacional” da Guerra Fria, republicanos ou democratas, todos os governos americanos foram guiados pela Doutrina Monroe em relação à América Latina e ao Caribe.

Trump – uma resposta agressiva ao declínio americano e ao espectro chinês

Donald Trump sabe que está mentindo, mas não pode deixar de expressar seu maior medo quando afirma: “O Canal do Panamá está sendo administrado pela China. China! Nós não o demos à China. E eles (o Panamá) estão abusando. Eles abusaram desse presente” (La Prensa, 13/1/25).

Nessas palavras, está expresso o cerne do problema. A política externa e comercial de Trump pretende ser uma resposta a um processo objetivo de declínio econômico e político nos Estados Unidos, que está tendo cada vez mais dificuldade para competir com a influência do capital chinês. Empunhar o porrete contra o Panamá agora faz parte de seu projeto de fechar o mercado dos EUA e, por extensão, da América Latina, aos produtos chineses que competem com as empresas americanas. A intenção é cortar o avanço do capital chinês sempre que possível. A concorrência parece estar evoluindo para um confronto entre blocos econômicos semelhantes aos que deram origem à Primeira e à Segunda Guerras Mundiais.

Uma das falácias contadas por Donald Trump é que milhares de americanos supostamente foram mortos na construção do canal. Isso é mentira. Embora os engenheiros que construíram o canal fizessem parte do exército dos EUA, a força de trabalho era composta principalmente por trabalhadores do Caribe

Como o Panamá é um lugar importante na geopolítica mundial, os Estados Unidos têm se preocupado com a presença chinesa no istmo, pelo menos desde 2017, quando as relações diplomáticas entre os dois países foram normalizadas. Antes disso, o Panamá estava entre os governos da América Central subornados por Taipei para bloquear a China. Mas a China tem sido o segundo maior usuário do canal depois dos Estados Unidos há décadas, portanto, as relações diplomáticas eram uma necessidade lógica.

Uma preocupação especial para Trump é o fato de que as relações diplomáticas foram acompanhadas de várias propostas, como a construção de uma ferrovia até a fronteira com a Costa Rica, um projeto que não se concretizou, mas que teve a oposição imediata daqueles que eram leais aos EUA no Panamá. A ferrovia não foi adiante, mas as empresas chinesas estão envolvidas na construção da quarta ponte sobre o Canal do Panamá e em outros projetos. A Hutchinson Whampoa, sediada em Hong Kong, gerencia os portos de Balboa e Cristobal, ao lado do canal. O capital chinês está envolvido até mesmo com o capital canadense na mina Cobre Panamá, cujo contrato passou a ser considerado inconstitucional após grandes mobilizações populares em 2023. A maioria das mercadorias reexportadas para a América do Sul a partir da Zona Franca de Colón é chinesa.

Esses desenvolvimentos econômicos fazem parte da tendência do mercado mundial, da globalização neoliberal imposta pelos Estados Unidos há 40 anos. Mas isso não transformou o Panamá em uma “neocolônia” do “imperialismo chinês”; pelo contrário, os governos panamenhos e a burguesia local continuam sendo fantoches do imperialismo norte-americano. Prova disso é o seu alinhamento internacional na ONU, na OEA e, recentemente, no caso da Venezuela.

Panamá, uma história de luta contra a Doutrina Monroe

O istmo do Panamá foi uma vítima particular da Doutrina Monroe como região estratégica para a passagem entre os oceanos Pacífico e Atlântico. A primeira ocupação do território istmiano ocorreu logo após os Estados Unidos terem roubado do México metade de seu território, incluindo a Califórnia, em 1846. Os americanos construíram uma ferrovia interoceânica no Panamá e, de forma efetiva, o ocuparam militarmente.

No final do século XIX, após a “Guerra de 1898”, na qual os EUA tomaram as últimas colônias da Espanha nas Américas e na Ásia (Cuba, Porto Rico, Filipinas e Guam), o país decidiu construir um canal para permitir que suas forças navais protegessem seus interesses imperialistas em ambos os oceanos. Para isso, separaram o Panamá da Colômbia, por meio de uma invasão simulada, e impuseram um Tratado assinado em 18 de novembro de 1903, pelo qual entregaram aos Estados Unidos o “direito” de construir, administrar e defender o canal e uma área adjacente (Zona do Canal), que seria controlada como se fosse parte desse país.

Uma das falácias contadas por Donald Trump é que milhares de americanos supostamente foram mortos na construção do canal. Isso é mentira. Embora os engenheiros que construíram o canal fizessem parte do exército dos EUA, a força de trabalho era composta principalmente por trabalhadores do Caribe, incluindo jamaicanos, guadalupenses, etc.

Eles trabalhavam sob um regime racista de “apartheid”, que separava física e socialmente os anglo-saxões brancos das “raças de cor”, inclusive em termos de salários. De acordo com relatórios da própria Comissão do Canal do Istmo, 5.611 trabalhadores morreram durante a construção do canal (1903-1914), dos quais apenas 350 eram cidadãos norte-americanos, o equivalente a 6% do total (La Prensa 16/1/25).

O povo panamenho lutou durante todo o século XX contra o enclave colonial da Zona do Canal e para reverter a administração do canal para o Panamá. A demanda pela nacionalização do Canal do Panamá ganhou força depois de 1956, quando o presidente Nasser nacionalizou o Canal de Suez no Egito.

Essas demandas atingiram seu clímax em 9 de janeiro de 1964, quando um grupo de estudantes panamenhos foi à Zona do Canal para exigir que a bandeira nacional fosse hasteada ao lado da bandeira americana como símbolo de soberania sobre esse território. Os estudantes foram atacados pela polícia e pelos habitantes americanos da Zona do Canal. Em resposta, o povo começou a se aglomerar na cerca que dividia a cidade panamenha da cidade americana para fincar bandeiras; as forças armadas dos EUA atiraram contra eles.

Os eventos se transformaram em uma pequena revolução anticolonial que durou três dias, resultando em mais de 20 mortos e 500 feridos no lado panamenho e na destruição de propriedades americanas. A partir de então, ficou claro que um novo tratado sobre o canal deveria ser negociado para resolver as “causas do conflito”: o fim do enclave do canal, a administração panamenha e a eliminação das bases militares dos EUA. Isso levou à assinatura dos Tratados de 1977 entre o General Omar Torrijos e o Presidente James Carter.

Um canal administrado pelo Panamá desde 2000

Na década de 1980, quando o canal já estava em processo de voltar para as mãos do Panamá, surgiu uma grave crise política e econômica, cuja complexidade incluía a discussão sobre como o Panamá deveria administrar o canal e como os recursos adjacentes, principalmente os portos, deveriam ser usados. Embora Omar Torrijos tivesse prometido dar a ele “o maior uso coletivo possível”, o setor burguês em torno do general Manuel Noriega queria transformá-lo em uma grande base militar, substituindo os quartéis americanos pelos panamenhos. No entanto, um outro setor da burguesia panamenha discordava e planejava privatizar as áreas revertidas.

A invasão de 1989 permitiu que os Estados Unidos remodelassem o país a seu favor, com a cumplicidade da burguesia panamenha. Em 1994, foi imposta uma reforma constitucional que deu ao canal um Conselho de Administração controlado pela oligarquia financeira e comercial panamenha, excluindo qualquer participação popular nas decisões, embora a Autoridade do Canal do Panamá (ACP) tenha sido definida como uma entidade pública.

As instalações foram transferidas e as bases militares foram desmanteladas a partir de 2000, mas em vez de “entrar no canal”, como Torrijos havia prometido, o povo panamenho foi testemunha passiva do processo de apropriação e privatização de áreas e portos adjacentes. Os dois principais portos, Balboa e Cristobal, foram entregues à empresa Hutchinson Whampoa, sediada em Hong Kong. Outros portos foram entregues a outras empresas com capital estrangeiro e panamenho.

O Canal do Panamá rendeu US$28.232 milhões aos cofres públicos, o que, comparado aos míseros US$1.879 milhões que o país recebeu de 1914 a 1999, quando estava sob administração dos EUA, mostra que a luta pela soberania produziu resultados concretos

Durante esses anos, houve uma demanda permanente das organizações sociais e populares panamenhas em relação à forma como o canal é administrado, à alocação de seus recursos e à privatização do que antes era a Zona do Canal. Essas demandas foram especialmente fortes em 2007, quando uma dispendiosa expansão das eclusas foi aprovada para permitir a passagem de enormes navios porta-contêineres.

Apesar disso, o canal é administrado por cerca de 8.500 trabalhadores panamenhos e responde por 6% a 8% do produto interno bruto do país. Em termos absolutos, em 24 anos de administração panamenha, o Canal do Panamá rendeu 28.232 milhões de dólares aos cofres públicos, o que, comparado aos míseros 1.879 milhões de dólares que o país recebeu de 1914 a 1999, quando estava sob administração dos EUA, mostra que a luta pela soberania produziu resultados concretos.

É por isso que, apesar das diferenças internas sobre a administração do canal, as declarações de Donald Trump produziram uma resposta quase unânime da nação panamenha, rejeitando e defendendo o seu canal. Até mesmo o presidente José R. Mulino, um tradicional aliado de direita dos interesses dos EUA, que foi vice-ministro das Relações Exteriores no governo imposto pela invasão de 20 de dezembro de 1989, se viu obrigado a condenar o discurso de Trump.

O governo e a burguesia panamenhos serão incoerentes na defesa do canal

Apesar das declarações altissonantes de Mulino e de outros políticos da burguesia do Panamá em relação a Donald Trump, o povo panamenho deve ser cauteloso, porque historicamente a burguesia e seus políticos têm agido como lacaios do imperialismo ianque. Foi isso que aconteceu em 1903, quando traíram e endossaram o tratado que criou o enclave colonial, e foi assim que agiram durante o século XX em todos os momentos críticos da história nacional. Basta lembrar a crise da década de 1980 e sua colaboração com as tropas invasoras.

Enquanto Trump não descartou o uso da força militar para retomar o Canal do Panamá, o presidente Mulino se ajoelhou diante dos interesses imperialistas dos EUA, não apenas dando legitimidade ao candidato derrotado nas eleições venezuelanas, o ultradireitista Edmundo González, mas até mesmo se propondo como guardião das supostas “atas”.

Como enfrentar Trump? Unidade latino-americana e mobilização popular

Uma coisa é o que Donald Trump quer fazer e outra é o que ele será capaz de fazer. O projeto da ultradireita imperialista estadunidense visa a aumentar as cadeias e a exploração dos povos do mundo, em particular deste continente. Porque essa é a resposta desesperada à crise do sistema capitalista global. Para isso, eles estão prontos para mergulhar o mundo na guerra, no sangue e no sofrimento. Foi o que demonstraram recentemente no genocídio contra o povo palestino em Gaza, nas guerras no Oriente Médio e na Ucrânia.

Mas o outro fator da realidade é o povo, a classe trabalhadora e os oprimidos, que não são atores passivos, mas lutam ativamente para defender suas vidas contra o ataque do sistema. Portanto, o resultado final ainda está para ser visto. Trump pode ser derrotado. De fato, em seu governo anterior, ele foi derrotado pelo movimento “Vidas Negras Importam”.

Cabe a nós atualizar a doutrina da unidade latino-americana promovida pelo Libertador Simón Bolívar diante da modernização da Doutrina Monroe

Qualquer tentativa de retomar o canal à força pelos Estados Unidos será enfrentada pelo povo panamenho com firmeza.

Cabe a nós atualizar a doutrina da unidade latino-americana promovida pelo Libertador Simón Bolívar diante da modernização da Doutrina Monroe. No ano de 2026, completam-se 200 anos (1826) de quando Bolívar convocou um Congresso Anfictiônico no Panamá para promover a unidade de nossos países diante das ameaças da Santa Aliança e da Doutrina Monroe norte-americana. É hora de nos reunirmos novamente.

Panamá, 16 de janeiro de 2025.

  • Professor Departamento de Sociologia da Universidade Nacional do Panamá.