Ao completar 90 anos de vida olho para traz e me vejo como uma sobrevivente. Sou a sétima de uma família nordestina de dez filhos, sem-terra, vivendo da renda gerada pelo trabalho do meu pai que era artesão fazedor de celas. Ele era respeitado pela sua clientela que o tratava como Mestre Tonheiro, e o considerava o melhor dos que existiam por lá, visto que as celas que fazia não feriam o dorso dos animais.
Para completar a renda da família, contávamos com o trabalho da minha mãe Enedina, que, além dos serviços domésticos, fazia bolo para vender com café na feira livre nos domingos, aos feirantes que vinham à cidade para vender os produtos colhidos em suas roças. Entretanto, essa rotina era quebrada nos períodos de estiagem que ocorriam com frequência e obrigava as famílias pobres a arribar para outros estados fugindo da seca.
Minha família teve que migrar em duas ocasiões: na seca de 1932, quando eu ainda não tinha nascido, e na de 1942. Nesta eu me lembro muito bem dos preparativos que se faziam a noite toda na véspera de se sair de madrugada, noite adentro, os adultos a pé e nós crianças em “caçuás” montados em um burro alugado por meu pai para esse fim. Eram léguas e léguas percorridas sob um sol escaldante e um calor infernal, até se chegar ao lugarejo onde havia uma estação de trem que nos levava rumo ao desconhecido. Pernoitávamos numa pensão miserável, às margens da linha férrea, até o dia seguinte bem cedo, quando tomávamos outro trem que nos transportava a outro destino.
Foi a vivência dessa triste realidade de pobreza da minha família e de muitas outras submetidas a iguais condições de penúria, naquela pequena vila no sertão paraibano, que forjou minha consciência e determinou a trajetória de vida e meu futuro.
Foi aí que, precocemente, me dei conta das enormes desigualdades que havia na sociedade, até mesmo numa pequena comunidade como aquela. Percebi que a maioria das famílias tinha que migrar para fugir da seca, enquanto outras, a minoria, não precisava arribar, pois dispunha de reservas de alimentos suficientes para atravessar os longos períodos de seca e aguardar o retorno das chuvas.
Foi na Paraíba, pois, que nasci, e onde muito cedo tomei consciência de classe. Foi lá também que me formei assistente social e iniciei minha militância na luta pela democratização da terra no campo, junto ao movimento pela reforma agrária.
Foi na Paraíba, pois, que nasci, e onde muito cedo tomei consciência de classe
Com os meus colegas de profissão, fomos ajudar na organização dos trabalhadores rurais que haviam sido dizimados pela ditadura militar por participarem das Ligas Camponesas. Por isso, também passei a ser perseguida pelo regime. Foi quando migrei para São Paulo no início da década de 70, e lá fiz concurso público para o cargo de assistente social da Prefeitura da capital paulista.
Designada para trabalhar nas favelas e cortiços na periferia da cidade, me deparei novamente com o mesmo apelo, lutar pela democratização da terra, dessa vez, a terra urbana. Juntei-me à população sem moradia e nos lançamos na luta pelo direito à cidade, ou seja, pela reforma urbana.

Ao mesmo tempo, dediquei-me à organização política da nossa categoria profissional. Reativamos a Associação Profissional dos Assistentes Sociais do Estado de São Paulo (APASSP), que estava desativada há 7 anos por determinação da ditadura militar. Foi através dessa entidade de classe que organizamos, politicamente, nossa categoria profissional, não só no Estado de São Paulo, mas também em âmbito nacional. Assim, fortalecemos nossa atuação e nos articulamos com os operários e sindicalistas do ABC paulista, que tinha Lula à sua frente, e começamos a participar da construção do Partido dos Trabalhadores (PT). Como militante petista, a história me levou por diversos caminhos: fui eleita vereadora da Câmara Municipal de São Paulo; deputada estadual da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e prefeita municipal de São Paulo. Aliás, fui a primeira mulher prefeita da capital paulista e, além disso, migrante nordestina, pertencente a um partido de esquerda e comprometida com os reais interesses dos setores populares da cidade.
Realizamos um governo democrático popular, que inverteu prioridades, no sentido de destinar a maior fatia do orçamento às políticas públicas voltadas aos segmentos excluídos da sociedade. E uma outra característica do nosso governo, foi governar com efetiva participação popular, por meio de mecanismos de democracia direta e com controle social sobre as ações da gestão. Com o apoio popular, conseguimos enfrentar a oposição da elite paulistana às ações do governo, além da oposição sistemática da maioria dos vereadores da Câmara Municipal.
Acrescente-se, ainda, a atuação dos Conselheiros do Tribunal de Contas do Município contra o nosso governo, que, inclusive, rejeitou todas as nossas contas, o que nunca fizeram a qualquer governo anterior ao nosso.
Tínhamos um secretariado de nível ministerial, seja do ponto de vista da competência administrativa, como do compromisso com o projeto político que realizamos na cidade
Ademais, tínhamos um secretariado de nível ministerial, seja do ponto de vista da competência administrativa, como do compromisso com o projeto político que realizamos na cidade. Tanto é que, o nosso governo, deixou um legado que permanece vivo na memória dos paulistanos, e que, até hoje, continua sendo referência na história político-administrativa do município de São Paulo, após mais de três décadas de sua realização.

Por fim, gostaria de mencionar minha rica experiência político-partidária ao longo dos últimos quarenta anos de militância. Comecei como fundadora do Partido dos Trabalhadores (PT), no início da década de 80, junto com Lula e muitos outros sindicalistas, sendo eu um deles, pois era presidente da Associação Profissional dos Assistentes Sociais de São Paulo (APASSP). Participei da construção desse importante partido durante 17 anos, o que para mim foi um privilégio. Quando saí para me filiar ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) que então, era presidido pelo ex-governador Miguel Arraes. Na época eu dizia que estava mudando de casa na mesma rua, que era o campo da esquerda. Fiquei no PSB por 19 anos e saí por divergências com a política de alianças daquele partido, na época, a meu ver, ampla demais do ponto de vista ideológico. Foi também uma rica experiência de militância, na companhia de excelentes companheiros e amigos até hoje. Citaria, entre muitos, o deputado Glauber Braga, que também deixara o PSB, por sinal, antes de mim, para filiar-se ao PSOL. Não poderia deixar de citar o companheiro Roberto Amaral, um dos quadros mais brilhantes e consequentes da esquerda brasileira, grande amigo e sempre inspiração e referência teórica na minha militância socialista.
Nos últimos 10 anos milito no PSOL como integrante de uma extraordinária bancada de deputadas e deputados federais, com quem aprendo todo dia e que me ajudam a manter-me fiel ao sonho que me inspirou a vida toda, o socialismo. Além disso, sou grata a Deus e à História pela satisfação de conviver com companheiras e companheiros de partido, o PSOL, tão especiais, e com os quais sonhamos e lutamos juntos por um mundo justo e onde todos possam ser felizes.

É como militante do PSOL que exerço o sétimo e último mandato de deputada federal e, na metade dele, me preparo e me organizo para mais uma empreitada: juntar-me a quem queira lançar-se em uma nova e fascinante aventura de construir um movimento nacional “Teia da Esperança” – e com ele lutarmos pela construção do poder popular.
Assim, retorno ao mesmo ponto de onde comecei, movida e inspirada pelo mesmo sonho, ajudar o nosso povo a fazer história, não só no sentido de mudar sua própria comunidade de vida e seu ambiente de trabalho, mas sobretudo juntar-se a muitos outros, conscientes dos seus direitos e da própria força e protagonizar a virada para um novo ciclo histórico-social, um novo tempo, uma nova humanidade.
O tempo de espera acabou. Do nosso grito, ecoa a “Teia da Esperança”, que é revolucionária. Dizemos basta ao “salve-se quem puder”. Ou nos salvamos todos ou não haverá salvação. Fiamos e tecemos a Teia porque não nos rendemos à cultura do descarte, do medo, do ódio, da fragmentação, da indiferença e da resignação.
Juntos (as) conjugaremos o verbo esperançar, como nos ensinou o mestre Paulo Freire, rumo à concretização do nosso sonho: construirmos uma nação justa e soberana onde todas e todos terão assegurado o pleno exercício da sua cidadania.
