Cada geração deve descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la.
Frantz Fanon
Nosso partido nasceu da maior derrota da esquerda brasileira: o abandono, pelo PT – maior partido deste campo dos últimos 50 anos – da estratégia de enfrentamento ao capital. A Reforma da Previdência, encaminhada pelo governo Lula I, significou esse pacto com setores neoliberais das elites brasileiras. Hoje, o governo Lula III aprofunda a retirada de direitos da classe trabalhadora, atacando a própria Constituição de 88, comprometendo os pisos constitucionais de saúde e educação, atacando o abono salarial e atingindo os segmentos mais vulneráveis da população brasileira, em sua grande maioria mulheres, negras e mães solo.
O PSOL nestes 20 anos nadou na contramaré, mas mantendo um perfil socialista, não sectário, democrático, trabalhando com diferenças e construindo sínteses. Estivemos contrários a qualquer medida contra nossa classe durante os governos petistas e apoiamos as medidas progressivas. Fomos vanguarda na luta contra o impeachment de Dilma, a Lava Jato e a prisão de Lula. Enfrentamos duramente o governo Bolsonaro e apoiamos Lula nas últimas eleições. Mas, fomos parte daqueles que defenderam candidatura própria no primeiro turno, pois acreditamos ser decisivo para o processo brasileiro, que o PSOL não se confundisse com um partido, como muito sinceramente definiu Zé Dirceu, o PT como “um partido de centro direita com uma política neoliberal”. Foi assim, com muita firmeza política, que defendemos o nome de Glauber Braga para Presidente da República.
O Partido escolheu outro rumo, não só do apoio desde o primeiro turno, como ser base do governo Lula III. Política que fomos contrários. Defendemos nossa autonomia e independência em relação a esse governo. Seguimos apoiando as medidas progressivas e diferenciação nos ataques à nossa classe, por parte do governo Lula. Seja à Reforma da Previdência, nossa Certidão de Nascimento, ou agora, ao Arcabouço Fiscal, que pune os mais pobres em um país tão rico.
Infelizmente a derrota eleitoral em 2024 confirmou nossos prognósticos. O giro liberal do PT na política econômica nos jogou em uma encruzilhada: seguir uma política neoliberal com verniz popular num caminho sem volta para onde o PT está levando a maioria da esquerda ou resgatar a trajetória do PSOL, combativo, mobilizador e socialista junto com os movimentos sociais, lutando por uma saída anticapitalista, antifascista e ecossocialista?
2025: o ponto de não retorno
As eleições de 2022 foram marcadas por um duro embate ideológico na sociedade, uma polarização brutal e foram vencidas por uma frente bastante ampla. O governo Lula, ao contrário das expectativas de retomada dos investimentos sociais, tem aplicado uma política econômica neoliberal sob a condução do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Mesmo após derrotar as diversas tentativas de golpe, ao invés de apresentar saídas para os trabalhadores e o povo o governo segue com foco na austeridade fiscal e na submissão ao mercado financeiro. O que tem desidratado a capacidade do Estado de promover ou, simplesmente, manter políticas públicas que se tornaram marcas dos governos petistas anteriores. O estelionato eleitoral tem como resultado a insatisfação popular, traduzida na queda de popularidade do presidente Lula, ajudando a fortalecer a extrema direita. O governo Lula coloca todo o campo progressista, os movimentos populares e as organizações de esquerda em risco real.
O PSOL nestes 20 anos nadou na contramaré, mas mantendo um perfil socialista, não sectário, democrático, trabalhando com diferenças e construindo sínteses
A ascensão de Jair Bolsonaro, como representação de um polo político neofascista, em 2018, já tinha sido resultado direto do fracasso das políticas econômicas neoliberais dos governos petistas anteriores. A frustração e desilusão com promessas não cumpridas e com a perda de direitos acenderam a desesperança. Um terreno fértil para o neofascismo. O governo Lula tem aprofundado e priorizado a agenda da classe dominante, adotando um arcabouço fiscal que estrangula os investimentos sociais. Isso abre espaço para o discurso populista da extrema direita, que capitaliza o desespero popular e a frustração com a falta de mudanças estruturais.
O ano de 2025 será decisivo. Se o governo não der um giro político e econômico claro, rompendo com a lógica do mercado e fortalecendo um projeto baseado em investimento público, redistribuição de renda e soberania econômica e nacional, que estimule os movimentos sociais em sua defesa e de suas medidas, o caminho para o retorno do bolsonarismo em 2026 estará pavimentado.
O governo precisa decidir se governará para o povo ou se será mais um capítulo da história de capitulações do petismo, agora com o agravante de ser responsabilizado por um retorno da extrema direita que pode vir acompanhado de um fechamento de regime, em um momento em que o neofascismo ganha força internacional. A escolha feita agora definirá não apenas 2026, mas toda uma difícil quadra histórica, que tem seus desafios profundamente agravados pela crise climática.
Diante de um governo que assume a agenda econômica do mercado, promovendo ataques aos direitos da nossa classe, aumentando a insatisfação popular e construindo as condições políticas para fortalecer a extrema direita brasileira, qual é o papel do Partido Socialismo e Liberdade?
A paciência da nossa classe já está se esgotando, exigindo mudanças dessa política de arrocho salarial, ajuste fiscal e carestia em um capitalismo agonizante diante de uma brutal crise social, econômica, política e climática. Nós temos a convicção de que nosso principal inimigo político, nesta quadra histórica, é a corrente neofascista que ganhou audiência de massas no Brasil e em parte significativa do mundo, e que se fortalece com a vitória de Trump, nos EUA.
Fomos vanguarda no combate ao golpe e ao impeachment. Porém, não podemos poupar o governo e o PT de críticas e precisamos apresentar alternativas a este governo de centro-direita, que tem aplicado políticas que acabam por estruturar, organizar e fortalecer setores de extrema direita. Ao mesmo tempo que desmoraliza o conjunto da classe trabalhadora e da esquerda, fazendo derreter sua capilaridade social e a confiança popular em todo o campo progressista.
O governo Lula tem aprofundado e priorizado a agenda da classe dominante, adotando um arcabouço fiscal que estrangula os investimentos sociais. Isso abre espaço para o discurso populista da extrema direita, que capitaliza o desespero popular e a frustração com a falta de mudanças estruturais.
O PSOL deve conformar um polo social e popular, intelectual e político à esquerda, construindo pressão política permanente sobre o governo para evitar que o descontentamento social seja sequestrado pela extrema direita, como já ocorreu em 2013. A realidade nos cobra posicionamento e, diante de um governo de vitórias simbólicas e derrotas concretas, é necessário escolher: o conforto das boas relações com os palácios ou cumprir as tarefas que a conjuntura nos impõe de forma coerente, combativa e consequente. Por isso defendemos que o PSOL deve sair da base do governo!
Na polarização é preciso ter posição à esquerda e coerente
A maior derrota eleitoral das últimas três décadas não pode ser explicada ou justificada apenas pelas escolhas das candidaturas ou das táticas adotadas em cada município onde os setores progressistas foram derrotados. A derrota foi um fenômeno nacional, com raras exceções. O impacto da impopularidade de um governo compreendido por amplos setores da população como um governo de esquerda, diante de suas capitulações conscientes na política econômica, desidratou as candidaturas de esquerda. E a direita tradicional e a extrema direita aproveitaram a circunstância – vide as emendas parlamentares Pix de Lira, promovendo o maior índice de reeleição.
Se é verdade que a derrota eleitoral da esquerda foi um fenômeno nacional pelo desgaste das gestões petistas, isso não nos exime de erros importantes em nossa construção, que levaram à ruptura com a trajetória de acúmulo que vínhamos tendo. A direção majoritária do partido perdeu sua capacidade de síntese, embruteceu sua cultura de relações internas, abriu mão dos grandes debates e estímulo às mobilizações sociais, para se apegar a ilusões eleitorais, que se frustraram diante de uma realidade que impõe que não há mais espaço para moderações forçadas e traições programáticas. Como consequência aumentou a despolitização da militância, encantada com os espaços de poder institucionais.
Devemos buscar a explicação para os erros nas escolhas táticas e, principalmente, no abandono de um programa antissistema, com estratégia revolucionária da defesa contundente de um projeto que amplie as conquistas dos trabalhadores organizados e da população em geral, como a manutenção do controle público das estatais e dos serviços públicos ou a necessidade da reforma agrária e urbana. Pensar um Brasil do futuro, retomar a unidade Latino-americana e de nossa localização em um mundo convulsionado é o desafio atual.
Era possível fazer diferente? Claro que sim! Dois exemplos foram significativos. A candidatura de Tarcísio no Rio, por exemplo, impediu que o tombo fosse maior. Foi importante não romper com a vanguarda e amplos setores que acompanham nosso partido e não seguiram Marcelo Freixo. Este, infelizmente, foi para o ostracismo que Lula dedica aos que o seguem achando que vão ganhar projeção. A nossa adesão à candidatura de Paes, seria nosso suicídio. Tarcísio manteve nossa trincheira, menor, mas de pé. Outro exemplo importante foi Kléber Rosa, em Salvador. Kléber fez uma campanha pela esquerda, reafirmando nosso programa, enfrentando debates espinhosos como presídios privados, câmeras nos uniformes da polícia e que a violência é um problema social que não se resolve com mais repressão. Lembrando que ele é policial antifascista. Terminou a campanha em segundo lugar, à frente do candidato que Lula estava apoiando. Kleber capitalizou a simpatia do conjunto da esquerda, abrindo, pela primeira vez, a possibilidade de uma nova etapa na construção do Partido na Bahia.
Há também um aspecto dessa derrota difícil de superar: a etapa concreta sob a qual se assenta a compreensão da classe trabalhadora. Diante das reformas da Previdência, a trabalhista, e as terceirizações que pioraram muito a qualidade do emprego formal, a saída para muitos foi a ilusão das alternativas individuais, da uberização, do empreendedorismo impulsionado por ideias do neoliberalismo. Longe do “revogaço” das medidas de Temer/Bolsonaro, prometido pelo governo. A ideia neoliberal de que a sua pobreza e miséria são responsabilidade sua, reforçada pela teologia da prosperidade, que ganha enraizamento nas periferias do Brasil. Diante desse cenário, os que ainda acreditam na política como ferramenta para melhorar a vida estão polarizados entre uma esquerda que não cumpre as promessas de campanha e a direita. Se a vida não melhora com Bolsonaro, nem com Lula, a conclusão é que a saída não é a política coletiva, mas as iniciativas individuais. Isso explica, em boa medida, o alto índice de abstenção em todo o país.
As prioridades nacionais do PSOL: São Paulo e Belém foram derrotadas!
A adoção da tática generalizada por amplos setores da esquerda brasileira de “parecer com eles” para vencer as eleições, em uma sociedade dividida, extremamente polarizada e disputada de todas as maneiras por forças políticas — desde as igrejas até as universidades, das redes sociais até os locais de trabalho —, abrir mão da identidade, se diluir, esconder seu programa e dissimular posições é se jogar do precipício.
A paciência da nossa classe já está se esgotando, exigindo mudanças dessa política de arrocho salarial, ajuste fiscal e carestia em um capitalismo agonizante diante de uma brutal crise social, econômica, política e climática
A derrota mais emblemática da esquerda brasileira, nestas eleições, foi na capital econômica do país, a maior cidade da América Latina: São Paulo. Protagonizada por Guilherme Boulos, foi marcada por uma mudança de perfil e de comportamento político e programático. Guilherme abriu o processo defendendo a internação compulsória como uma possibilidade, igualando a resistência palestina aos ataques brutais e violações de direitos humanos protagonizados pelo Estado sionista e genocida de Israel. Boulos baixou a guarda para os setores mais atrasados do empresariado paulista, apontando para privatizações e parcerias público-privadas como solução para alguns problemas.
Escondeu pautas importantes do movimento negro, como a luta antiproibicionista. Fez pouca ou nenhuma referência à guerra travada pelos conservadores contra a vida das pessoas LGBTQIA+. Atacou o governo venezuelano. Disse que, se necessário, faria reintegração de posse.
Boulos, que dessa vez contou com apoio do PT e do campo progressista desde o primeiro turno, substituiu a aguerrida Luiza Erundina pela reacionária Marta Suplicy, que participou do golpe contra Dilma e compunha o governo do então prefeito de direita, Ricardo Nunes. Era a reprodução da velha política, que tem afastado a juventude e a vanguarda mais séria. Boulos não recuperou dignidade alguma de esquerda, ele enterrou o programa e desanimou a militância. Escondendo o programa, o partido, o compromisso com o socialismo e as bandeiras de esquerda, dissimulou ser o que não era e não cresceu nem 1% dos votos que teve na eleição de 2020, onde saímos com cara própria, foi mais politizada, mais aguerrida e com pelo menos sete vezes menos recursos do que em 2024.

Belém do Pará: ao que serviu Edmilson Rodrigues?
A vitória de Edmilson nas eleições de 2020 empolgou o PSOL. Finalmente, teríamos uma vitrine para aplicar a política do partido e provar que poderíamos também vencer eleições majoritárias. Edmilson tinha um legado de uma gestão popular, defensora da maioria miserável das periferias de Belém. Porém, a decepção de grande parte da base, que confiou em uma alternativa realmente transformadora para a cidade, veio rápido. Seu mandato, longe de ser um modelo de ampliação do poder popular e de políticas de esquerda, falhou até mesmo em representar uma ruptura com as práticas tradicionais. Fez uma gestão marcada pela ausência de medidas concretas voltadas para a melhoria do serviço público; sua incapacidade de enfrentar os interesses do grande capital e a falta de políticas públicas deixaram claro que sua administração não se diferenciou das anteriores em aspectos fundamentais. Além disso, sua relação com movimentos sociais foi marcada por distanciamento e, em alguns casos, por repressão, o que aumentou o descontentamento de setores da esquerda e a população em geral.
E se eles tivessem ido à esquerda, venceriam as eleições?
É sempre difícil prever, embora seja uma tarefa recorrente de qualquer leninista que tenta construir uma direção consciente do processo político. Os aspectos da realidade nos apontam que, mesmo que a campanha fosse à esquerda, as dificuldades para vencer as eleições em São Paulo e, mais ainda, em Belém seriam gigantescas. Porém, há formas de ser derrotado, e a capitulação ao centro, além da derrota eleitoral, nos impõe uma desmoralização política, nos joga na vala comum dos partidos da ordem e cria desconfianças em toda uma nova geração que tem, até aqui, o PSOL como referência de luta intransigente contra a exploração e a opressão capitalista.
Para onde vai a fração de maioria do PSOL?
A atuação do PTL – campo majoritário – na Comissão Nacional do 8º Congresso do PSOL foi calculada para dominar o Partido e para isso usaram qualquer arma para impedir o equilíbrio de forças que sempre marcou a história do PSOL. Atuaram para derrubar a maior plenária de todo o país que a oposição organizou. A argumentação principal foi ignorada para validar diversas outras plenárias pelo país. A justificativa de que a plenária foi desorganizada e com muita tensão e tumulto, se considerada, teria derrubado o 8º Congresso Nacional do PSOL diante do infeliz episódio de flagrante violência física.
Esses métodos estão a serviço de uma política.
Um partido mais adaptado à política institucional, menos militante, em que os aparatos e acordos (por cima), via governos e interesses eleitorais, têm determinado a política partidária psolista. Essa gestão tem sido marcada por ataques aos princípios democráticos da esquerda. Embora o objetivo de expulsar completamente os setores da esquerda das decisões políticas e do aparelho partidário tenha sido derrotado por uma reserva militante que não sucumbiu à lógica golpista de dominação do aparato e destruição de qualquer pensamento divergente.
Se é verdade que a derrota eleitoral da esquerda foi um fenômeno nacional pelo desgaste das gestões petistas, isso não nos exime de erros importantes
A democracia no PSOL está sob ataque constante. A proporcionalidade qualificada está em risco permanente. As instâncias deixaram de ter funcionamento orgânico e passaram a ter funcionamento protocolar e, por último, passaram a votar nas instâncias enquanto agrupamentos, retirando todo o processo de busca de acúmulo e síntese nas reuniões. O mesmo acontece com a bancada, outrora nosso cartão de visitas, referência para todo Partido, hoje raramente se reúne. A política de relações com o governo, que impede parte da bancada de ir até às últimas consequências e fazer uma denúncia contundente contra as medidas do governo, faz do PSOL um partido menos útil à classe trabalhadora do que em outros tempos, como afirmou nossa decana Luiza Erundina, na última reunião de bancada do ano passado. Os rompantes autoritários de determinados dirigentes, a perseguição dos que divergem das capitulações econômicas, são sintomas mórbidos de uma direção que tenta submeter um partido com tradição de luta e radicalidade aos seus interesses imediatos e relações com o governo de Frente Amplíssima, mas que enfrenta dificuldades diante da reserva militante e socialista do nosso partido.
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Historiadora, Secretária Geral do PSOL Nacional
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Professor e membro da Executiva Nacional do PSOL.
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Membro do Diretório Nacional do PSOL e coordenador da Agência Alternativa Mídia e Gestão
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Jornalista, ex-deputado, fundador e membro da Direção Nacional do PSOL.