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Gaza às portas da “solução final”

“Estou exausto. Ontem à noite, não consegui dormir. E quando consegui, podia ouvir bombas nos meus sonhos. Um pesadelo real. Como eles podem ser tão maus?”
(MC Abdul, Shouting at the Wall)


Em memória de Anas Al-Sharif

O genocídio em curso na Faixa de Gaza, perpetrado por Israel em parceria com os EUA, compartilha, evidentemente, diversas características com os demais genocídios conhecidos e documentados, inclusive os mais notórios dos últimos cem e poucos anos, como os que vitimaram os armênios; os herero e os nama na Namíbia; os bósnios; os tutsi em Ruanda; as minorias étnicas no Camboja e no Sudão; os judeus e os ciganos sob o nazismo. Em todos esses casos estão atendidos alguns, senão todos, os critérios para a caracterização desse tipo de crime, nos termos da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1948 e ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 30.822/1952, assinado por Getúlio Vargas.

No genocídio, lembremos, é atacado um grupo – étnico, nacional ou religioso – claramente identificável, e há um intuito também claro de destruir esse grupo, no todo ou em parte, intuito este que se concretiza por meio de ataques diretos e pela destruição sistemática dos meios de subsistência da população 1, de par com uma estratégia de desumanização no plano simbólico, implementada por meio de uma linguagem belicista que reduz o grupo-alvo a “praga”, “câncer”, “vermes”, “animais” a serem eliminados.

Uma terminologia que facilita e mesmo induz à violência em massa.

Contudo, o genocídio palestino, que atravessa décadas (seu marco inicial é a Nakba de 1948) e ganhou novo ímpeto em outubro de 2023 2, destaca-se nesse horrendo mostruário por ao menos duas características principais, às quais se soma o uso da mais avançada tecnologia de destruição que conhecemos até aqui.

A primeira delas, também relacionada a um avanço tecnológico sem precedentes – neste caso, a explosão da comunicação via internet – é o fato de este ser o genocídio mais bem documentado da história, o primeiro acompanhado em tempo real pela população do globo, em que pesem as concessões e compromissos de grupos de comunicação com o lobby sionista (não nos esqueçamos dos constrangedores editoriais negacionistas que vêm sendo expelidos pelo envilecido Estadão). Em meio à pletora de evidências, o registro do assassinato do ativista Odeh Hadalin (membro da equipe do premiado documentário “Sem chão”) pelo colono israelense Yinon Levi, feito pela própria vítima, e a morte do jornalista Anas Al-Sharif, da rede Al-Jazeera, em ataque aéreo que ele mesmo acabara de cobrir, demonstram que este é um massacre tão documentado quanto é possível sê-lo.

A segunda característica distintiva do genocídio em curso, difícil de encontrar com a mesma nitidez em massacres pregressos perpetuados contra outros povos, é a clareza cristalina de propósitos anunciada pelos algozes, os quais, embora ainda invoquem, aqui e ali, o ultra-desgastado argumento do “direito à autodefesa” (restringindo-o a si mesmos e superestimando de modo surreal a precária resistência armada palestina), trazem a público, sem pejo, seu ímpeto racista e o objetivo de dar números finais à limpeza étnica iniciada décadas passadas.

No genocídio, lembremos, é atacado um grupo – étnico, nacional ou religioso – claramente identificável, e há um intuito também claro de destruir esse grupo, no todo ou em parte, intuito este que se concretiza por meio de ataques diretos e pela destruição sistemática dos meios de subsistência da população

A ordem de Tel Aviv, claro está, é consolidar uma supremacia de judeus brancos no território colonizado (a que fanáticos da coalizão governante se referem como “Judeia e Samaria”).

Já em 9 de outubro de 2024 (dois dias após o ataque-surpresa, ou não tão surpresa, do Hamas, que cobrara 1.139 vidas), o então ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, anunciou que seu país passara a impedir o fornecimento de água, gás, combustíveis e alimentos à região palestina: “A ordem foi para se estabelecer o bloqueio total para a Faixa de Gaza. Não haverá eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível: tudo fechado”, explicou Gallant, em entrevista à imprensa local. E arrematou, numa declaração para os livros de história: “Estamos combatendo animais humanos e agindo em conformidade” (BBC News, 07/10/2023).

O anúncio de Gallant não foi uma declaração isolada do alto escalão do protetorado. Passado quase um ano, ainda no cargo de Ministro das Finanças de Israel, o colono ultradireitista Bezalel Smotrich afirmou, em 19/05/2025, ter sido forçado pelas circunstâncias a aliviar o bloqueio a Gaza (segundo ele, moralmente justificável, mesmo ao custo de matar milhões de pessoas de fome), para evitar uma reação internacional: “Estamos desmantelando Gaza e deixando-a reduzida a pilhas de escombros, com uma destruição total sem precedentes no mundo. E o mundo não está nos impedindo” – declarou Smotrich ao justificar o recuo tático, assim fazendo uma avaliação precisa da inércia da dita “comunidade internacional” perante o horror que ele, orgulhoso, ajudava a perpetrar.

Fora do governo, outras personalidades têm sido igualmente explícitas ao vocalizar o zeitgeist dominante no enclave sionista. Ex-integrante do Likud de Netanyahu, hoje em sua própria organização extremista (que atende pelo sugestivo nome de Zehut, ou “identidade”), Moshe Feiglin chegou a citar, numa entrevista à televisão em junho de 2024, o pai do holocausto judeu para justificar o estabelecimento da Gaza hebraica: “Não somos hóspedes em nosso país; este é o nosso país, ele todo. […] Como disse Hitler: ‘Não posso viver enquanto houver um único judeu’. Não podemos viver aqui se restar um único islamonazista em Gaza.” Em declaração incomum para um líder religioso, e amplamente divulgada nas redes sociais (mas misteriosamente ignorada pelas agências de notícias), o rabino sionista Ronen Shaulov, imbuído do mesmo espírito genocida, clamou em 28/07/2025: “Todos os habitantes de Gaza, todas as crianças de Gaza, devem morrer de fome”.

Com efeito, essa identificação precisa do grupo étnico a ser eliminado ecoa o ideário do Führer, que registrou em Minha Luta (1925), anos antes dos acontecimentos que ninguém ignora: “Eu considerei que havia somente um verdadeiro inimigo: os judeus. Eles formavam a única fonte real de ameaça”. E ainda: “Meu lema não é incomodar o inimigo, mas destruí-lo por todos os meios”.

É sintomático, pois, que a identificação – de resto, óbvia – entre sionismo e nazismo gere reações extremadas entre representantes do “povo escolhido” identificados com a doutrina de Theodor Herzl (os quais xingam de antissemitas ou self-hating Jews, conforme o caso, quem lhes fustigue a ferida narcisista), e acione um mecanismo de defesa mesmo em aliados de Israel – como a velha Alemanha, que carrega na má-consciência o peso dos genocídios que praticou.

Embora manifestações massivas contra o extermínio venham tomando as grandes cidades de diversos países (só no último 9 de agosto, quase 500 manifestantes foram detidos no centro de Londres, inclusive idosos e pessoas com deficiência), e mesmo em Tel Aviv tenham sido registrados protestos relevantes, o apoio à limpeza étnica segue majoritário entre os israelenses: pesquisa encomendada pelo jornal progressista Haaretz, divulgada em junho último, indicou que 47% dos israelenses apoiam o assassinato de todos os palestinos – homens, mulheres e crianças – na Faixa de Gaza. O levantamento também mostrou que 82% dos cidadãos do protetorado apoiam a expulsão dos palestinos de suas terras; além disso, 56% dos judeus israelenses, segundo o estudo, querem a expulsão de todos os palestinos que residam no território de Israel (Brasil de Fato, 04/06/2025).

Com todo esse suporte interno, contando ainda com a fidelidade da Casa Branca e do Congresso dos EUA, a paralisia da ONU, a vexaminosa cumplicidade dos países árabes e a hesitação de uma União Europeia convertida em satélite da ex-colônia americana, Netanyahu (como seu ex-ministro Yoav Gallant) segue a salvo da ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra e de lesa-humanidade.

Tampouco há, no horizonte, efeito prático da denúncia sul-africana, corretamente apoiada pelo Brasil, na Corte Internacional de Justiça (CIJ, o mais alto tribunal das Nações Unidas), ação em que Israel é réu pelo genocídio em curso.

Embora algumas reações internacionais ao terror sionista comecem a ir além das notas de repúdio e dos belos discursos (e neste sentido há que saudar as iniciativas de Colômbia e Brasil, mas ainda precisamos cobrar o rompimento total das relações com o protetorado), é ainda inimaginável a realização de uma marcha de líderes mundiais sobre as ruas de Paris, como a que se deu em janeiro de 2015, após o ataque ao jornal Charlie Hebdo, que cobrou a vida de doze pessoas. Marcha que contou – ironia das ironias – com a presença de ninguém menos que o Sr. Netanyahu.

Bibi não apenas segue impune como dobra a aposta, anunciando a solução final para o drama palestino e a consolidação do Lebensraum israelense. Num contorcionismo retórico digno da novilíngua orwelliana, o facínora registra em suas redes sociais: “Não vamos ocupar Gaza – vamos libertar Gaza do Hamas. Gaza será desmilitarizada e uma administração civil pacífica será estabelecida, uma que não seja a Autoridade Palestina, nem o Hamas, nem qualquer outra organização terrorista. Isso ajudará a libertar nossos reféns e garantirá que Gaza não represente uma ameaça a Israel no futuro.”

Enquanto isso, os números da carnificina vão se tornando a cada dia mais contundentes. Estimativas variam, mas enquanto este texto é redigido, o Ministério da Saúde de Gaza reporta cerca de 61 mil palestinos (1/3 deles crianças) assassinados por Israel no último biênio – número considerado conservador por diversos observadores, tendo em vista os efeitos indiretos dos ataques, como as doenças e a fome, e a dificuldade de contar os corpos sob a massa de escombros da prisão a céu aberto.

Já o ataque deliberado à tenda dos jornalistas da Al-Jazeera (que vitimou Al-Sharif e 4 colegas, no último 10 de agosto) fez a imprensa internacional se debruçar sobre o número impressionante de jornalistas assassinados desde o início do massacre: segundo a rede Al-Jazeera, mais de 270 jornalistas foram assassinados desde o início da ofensiva israelense sobre Gaza, em outubro de 2023.

A informação também é alvo do massacre.

É difícil, e talvez inútil, tentar identificar o que há de mais horrendo e repugnante em um genocídio – mas, de par com as imagens dos pequenos corpos despedaçados das vítimas mais inocentes que se possa imaginar, o lento assassinato de civis desarmados pela desnutrição forçada choca especialmente. Assim, gravaram-se na memória da humanidade as imagens dos corpos esqueléticos dos prisioneiros de Auschwitz — uns ainda vivos, outros jogados em pilhas de cadáveres, como se nem humanos fossem.

Contando ainda com a fidelidade da Casa Branca e do Congresso dos EUA, a paralisia da ONU, a vexaminosa cumplicidade dos países árabes e a hesitação de uma União Europeia convertida em satélite da ex-colônia americana, Netanyahu segue a salvo da ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional

Em entrevista ao The Intercept (“A Purely Manmade Famine: How Israel Is Starving Gaza”, 08/08/2025), Bob Kitchen, vice-presidente de emergências do Comitê Internacional de Resgate, explica como a fome em Gaza é resultado direto dos ataques israelenses e de restrições deliberadas à entrada de ajuda humanitária — e não de escassez global de alimentos. É a fome sendo utilizada como arma de guerra – uma evidência gritante de crime contra a humanidade, à espera de julgamento.

Sob os escombros de Gaza – a prisão a céu aberto convertida num grande cemitério, no bojo de um projeto de limpeza étnica anunciado aos quatro ventos – vai sendo enterrada a noção mesma de “civilização ocidental”, sempre atravessada por demonstrações espantosas de incivilidade, mas ainda assim cantada em verso e prosa por seus próceres, à frente deles uma Europa hoje reduzida à condição de destino turístico e satélite de um império em luta contra seu inexorável declínio.


  1. Fome induzida, deslocamentos forçados, confinamento em campos de concentração; bloqueio do acesso a água e medicamentos e ataques à infraestrutura essencial – tudo isso pode entrar no pacote. ↩︎
  2. Cabe notar que o gueto palestino não é o único alvo da ofensiva israelense: “Com a atenção do mundo voltada para Gaza, os colonos extremistas da Cisjordânia estão levando a cabo uma das campanhas mais violentas e eficazes de intimidação e apropriação de terras desde que Israel ocupou o território, durante a guerra árabe-israelense de 1967”, informa o NY Times (16/08/2025). ↩︎
  • Mestre em Relações Internacionais e Doutor em Letras (PUC-Rio)